sábado, 13 de dezembro de 2008

Capítulo III (Parte II)

Havia algo de negro nos olhos de Soran Fadenbran, enquanto caminhava por entre a multidão agitada, expectante relativamente ao casamento em vias de acontecer. Noutras circunstâncias, a sua figura teria tido no povo um impacto poderoso, levando a que se afastassem para permitir a passagem do seu nobre e imponente vulto. Naquele dia, contudo, o traje de um dos mais importantes lordes do reino não se marcava pelos luxuosos veludos da sua casa, mas sim pelos tecidos vulgares que, ainda que lhe servissem de disfarce, enquanto caminhava pelo meio da populaça, não lhe atenuavam o brilho da beleza que em breve voltaria a ser revelada.
Com um olhar penetrante, Soran percorreu a multidão, em busca dos seus aliados. Precisava de saber que tudo estava preparado, que a sua conspiração não falharia por um erro estúpido. Só depois retomaria as marcas da sua posição social e ocuparia o sue lugar na bancada dos lordes, imediatamente atrás daquele que, além de seu inimigo, seria também o seu alvo.
- Não devia andar por aqui sozinho. – sussurrou, subitamente, uma voz ao seu ouvido, levando a que o lorde se sobressaltasse. Ainda assim, este controlou as suas emoções e, calma e ponderadamente, continuou a caminhar, apercebendo-se então de que a figura que lhe falava se colocava a seu lado.
- Delenia… - murmurou Soran, reconhecendo-a – Andava à tua procura. Tudo está preparado?
A mulher respondeu-lhe com um sorriso perturbador.
- Evidentemente. – disse – Durun e Avalen foram destacados para a guarda das damas reais. Infelizmente, foi necessário que os soldados originais fossem substituídos, uma vez que sofreram um acidente.
Soran acenou, solene.
- Um acidente mortal? – inquiriu.
- Por quem me toma, senhor? – inquiriu Delenia, fingindo-se chocada – Doloroso, talvez. Não creio que se possam aproximar das celebrações nas próximas horas, mas, se isso o preocupa tanto, saiba que estão vivos e que, quando recuperados, não ficarão com sequelas…
- Não troces de mim, mulher! – exclamou o lorde, mantendo a voz num tom baixo, mas nitidamente ameaçador – Os meus pensamentos acerca dos métodos que usas não são para aqui chamados. E tu? Como vais alcançar o jovem príncipe?
Delenia sorriu.
- Eu? – perguntou – Não creio que venha a ter grandes dificuldades com isso. Imagine que uma mulher com a minha beleza se aproxima dos soldados e pede para servir o senhor na cerimónia. Julga que serei recusada?
- Assegura-te de que não o és. – ordenou Soran, peremptório.
O sorriso desapareceu dos lábios da mulher.
- Tudo está pronto. – disse ela – Cumpra com a sua parte que nós cumpriremos com a nossa. E, se bem me recordo, o vosso lugar é junto de lorde Caledon.
Soran assentiu.
- O meu lugar espera-me e não me fugirá, Delenia. Vai, e toma o teu posto, que eu tomarei o meu. Não creio que este… casamento… tarde muito mais em começar.

Sozinho no silêncio da câmara sacerdotal, também Lothian cumpria com a que seria a sua missão. A taça da celebração estava já pronta e o melhor vinho de Lithian enchia o ouro do vaso que tocaria, antes de qualquer outros lábios, os reais lábios de Amon Raven. Faltava apenas um último toque, o rubro fulgor que arrancaria ao arrogante rei o derradeiro sopro da sua vida, deixando apenas a sombra de um corpo inerte e o caos espalhado sobre as ruínas do seu reinado.
Lentamente, o conselheiro percorreu com o olhar todos os recantos da câmara, assegurando-se de que se encontrava sozinho. A mais pequena falha significaria o fracasso e a morte e esse era um risco que ele não estava disposto a correr. Depois, vendo que nenhum dos padres e monges que auxiliariam à cerimónia voltara para trás, aproximou-se, cuidadosamente, da taça da celebração, com a qual, depois de cumpridos os rituais, o senhor de Lithian abençoaria a união do casal.
O pequeno frasco surgiu, como se do nada, na sua mão trémula. Depois daquele passo, não haveria retorno. Era a sua vida que apostava naquele gesto e, por momentos, perguntou-se seria aquela a escolha certa. Quando a hesitação surgia, contudo, havia também uma voz que lhe recordava tudo aquilo que perdera e, mais uma vez, as suas apreensões silenciavam-se sob o peso do desejo de vingança e, naquele momento, foi isso mesmo que aconteceu.
Meticulosamente, Lothian retirou a tampa do frasco e, inclinando-o um pouco, derramou sobre o rubro vinho o líquido mortal. Nesse momento, um breve sorriso escapou dos seus lábios, afogando-se depois sob a austera máscara da sua serenidade habitual. Em seguida, como se prestasse os seus respeitos ao deus que, do altar, presenciara o seu acto, fez uma leve vénia, e afastou-se em direcção ao exterior.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Capitulo III - Parte I

Os corações tremiam à medida que a rainha se aproximava de cada um dos envolvidos na preparação da celebração. Todos sabiam que nenhum pormenor poderia falhar. Nada. Aquela era uma oportunidade única de mostrar ao seu marido e rei o que ela podia fazer por ambos. Afinal, nem todas as batalhas se ganhavam com espadas. Havia algumas, raras, é certo, que se resolviam em dias como aqueles, a demonstração da superioridade e da riqueza, a nobreza no seu melhor, ultrapassando todos os outros reinos como uma mostra de império. Não foi de estranhar, pois, quando, ofuscada pelo sol que brilhava fortemente, a cabeça de um escravo que não tinha cumprido as suas funções apropriadamente rolou, parando mesmo ao lado da sua filha de apenas oito anos. A sua mãe correu apressadamente para lhe tapar os olhos, esquecendo-se ela própria da tragédia perante si. A rainha sorriu, apontando insistentemente para o corpo que, por alguns segundos, ainda se moveu, como se mesmo sem rosto todos os presentes conseguissem sentir o seu sofrimento e desespero…Afinal, tinham sido apenas quatro flores que haviam murchado…quatro flores que custaram a raiz de uma vida.
- O que vos solicitei foi tão simples que até chimpanzés ensinados conseguiriam cumprir, mas mesmo assim encontro tamanhos disparates que, não fosse hoje um dia festivo, enviar-vos-ia a todos para uma arena com leões famintos por tamanha estupidez! – exclamou a rainha – Hoje não tenho prazer algum em mandar cortar cabeças, porque há coisas mais importantes! Mas farei aquilo a que me obrigarem! Não admito tanta disciplicência, tendo eu já explicado há demasiadas semanas o que este dia significa para mim. Estão cá os melhores dos melhores para a organização do casamento, e vocês, insignificantes escravos, servem apenas para remediar alguns trabalhos. Custará assim tanto não serem inúteis uma vez na vida?
Um dos escravos, cansado de tanta humilhação, pegou uma pedra do chão e, sem reflectir, atirou-se em direcção da rainha, porém encontrou a espada de um dos soldados que perfurou o seu corpo. O escravo caiu de joelhos, cuspindo sangue em cima dos sapatos da rainha. Irada, Alessandra deu um pontapé na cabeça do escravo que respirava os seus últimos fôlegos.
- Tirem estes malditos corpos daqui! – ordenou aos soldados - E vocês, – olhou para os restantes escravos com repugnância – cumpram o que vos foi exigido ou amanhã será um belo dia para os leões. E garanto-vos que a carne humana é dos almoços favoritos deles.
A rainha afastou-se, cercada pelos seus guardas, diante do olhar assustado dos vários prisioneiros.
- Minha rainha, – disse um dos guardas – dentro de momentos devem começar a chegar os vários convidados para a cerimónia. Devemos estabelecer desde já o perímetro de segurança?
- As horas estão a passar demasiado depressa. – desabafou a rainha - Sim, soldado, quero o castelo todo cercado. Não quero surpresas desagradáveis neste dia. E acredito plenamente que tu não queiras nenhuma amaldiçoada “bênção” do rei pelo crepúsculo do dia seguinte caso o casamento não corra como o planeado.
- Às suas ordens, minha rainha. A nossa força tudo fará para que nada corra mal.

No quarto, Adhemar acordava aos poucos, ainda zonzo devido à agitação da noite anterior.
- Maldito vinho do pecado, – disse, sorrindo e deixando-se cair de novo na cama – pecado suave e delicioso como Ceres. Ah, selvagem mulher que me fazes perder a descompostura. Libertas o que de animal resta em mim.
Gälart entrou, esfregando os olhos.
- Preparado para a grande cerimónia, meu querido primo? – perguntou, bocejando – Não a podes adiar para mais tarde? Mais umas horas na cama não nos fariam nada mal.
- A ti não. – sorriu o príncipe – Deve ser complicado tomar conta de duas delas.
O primo soltou uma gargalhada.
- Falas como se nunca o tivesses feito.
- Pois, meu primo, – começou Adhemar, levantando-se da cama – nem quatro mulheres juntas seriam como Ceres.
- Que romântico, Adhemar… – afirmou Gälart – Começo a cogitar que, fosse Ceres a tua noiva hoje, e este casamento significaria mais do que aquilo que é.
- Seria cama. Não que desgoste de Ísis, mas é demasiado recatada para mim.
- Recordas-te de Yella? – questionou o primo - Casada, sempre solitária, tímida… Também parecia casta. Até que eu surgi na sua vida, e posso afirmar que dentro do quarto ela era tudo menos púdica.
- Efeitos da poesia. – ironizou Adhemar enquanto se vestia. – É melhor saíres agora, tenho que me preparar. A minha mãe deve estar por aí a aparecer. Anda um poço de nervos com esta cerimónia. Até parece que é ela que vai contrair matrimónio.
- E a tua mãe encolerizada… – sorriu Gälart abrindo a porta do quarto para sair – É melhor sair da frente.
- É mesmo, meu primo – sorriu o principe – Até já.

- Está tudo a correr como previsto? – interrogou Elara – É por hoje que temos perdido tanto tempo…Se alguma coisa falha…
- A rainha pediu agora para serem cobertas todas as entradas para o reino. – explicou Rómulo. - Mas obviamente que isso não nos interessa. Os arqueiros já cá estão. Encontram-se perto da fonte real. Quando chegar a altura subirão as torres. Eu sei como distrair os guardas das entradas.
- O melhor que nos podia ter acontecido foi a rainha ter-se decidido por um casamento fora de portas. – sorriu Elara - Serão alvos muito mais acessíveis. Espero que os arqueiros não sejam incompetentes. Duas setas apenas mudarão as nossas vidas, e se estas falharem…tudo desabará.
- São os melhores arqueiros do reino. Não se desassossegue. Amanhã por esta hora, o reino será todo seu….
- Assim o espero, Rómulo, caso contrário vou cobiçar a tua cabeça como enfeite de meu quarto.
- E a bruxa? – questionou o soldado – Será que não vai aparecer hoje? Será que não se vai intrometer? Bem sei que a princesa já tratou desse assunto, mas é uma bruxa! Não confio em palavras de magas.
- Nem eu. – sorriu Elara – Porém como te disse antes, confio na sua ganância.

Na sala real, a rainha andava às voltas de um lado para o outro.
- Estão quase a chegar os convidados e metade da família ainda nem se levantou. – suspirou.
- Tenha paciência, minha rainha. Estarão prontos a tempo. – disse uma das conselheiras reais.
- Não há como ter, Dyniana. O meu querido filho foi para as borgas, nem sei em que condições vai acordar. Este casamento não pode ser nenhuma vergonha para a família real.
- E Ísis? – perguntou Dyniana – Estará pronta?
- Quando lá passei estava a vestir-se. Ficará maravilhosa naquele vestido. – afirmou Alessandra.
- Porque não vai ajudar nos últimos retoques? – questionou a conselheira real – Alguém tão bela como a rainha só poderá melhorar a imagem de Ísis.
- Sempre me distraio. – assentiu a rainha, suspirando – Anda comigo.
Tal foi a surpresa da rainha e da sua conselheira quando Ísis não estava em seu quarto…

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Capítulo II (Parte 6)

Amanhecia, um dia que se prometia azul e luminoso, demasiado belo para o fatídico destino que sobre o seu tempo pairava. A luz invadia a terra, dispersando as sombras em formas mais nítidas e, perante o fatigado olhar da apreensiva Amara, a aurora revelava-se no renascer de todo o seu soberbo esplendor.
Na sua mente, contudo, parecia-lhe que não devia ser assim. Devia chover como se o próprio apocalipse ameaçasse descer sobre a cabeça dos homens, desfazendo em cinzas e sangue tudo o que a sua mão alcançasse. Os relâmpagos deviam rasgar os céus ao ritmo do trovão, abrindo ao funesto dia que surgia o presságio de uma morte em vias de caminhar entre os vivos.
Vingança… O sussurro da sedutora divindade pulsava-lhe nas veias como se um tambor ribombasse nos abismos. Aproximava-se o momento, a sua hora, quando o ódio que lhe alimentara alma e pensamento se tornaria, finalmente, real, mas, ainda assim, não conseguia evitar que uma vaga sensação de mau presságio lhe assombrasse o coração.
Quantas vidas arriscava, afinal, apenas para conquistar a morte dos seus inimigos? Porque, por mais que se tentasse convencer do contrário, e ainda que soubesse que a morte dos Raven faria de Lithian um lugar melhor, ela sabia que a força que ditava as suas acções não era assim tão nobre. Na verdade, os seus fins eram puramente egoístas. Queria a morte da criatura que lhe destruíra a vida e dos cruéis senhores que lhe haviam dado todo o seu apoio.
Silenciosamente, Amara desviou o olhar dos céus, preparando-se para entrar em casa. Com o florescer da manhã, sabia que o movimento despertaria na aldeia dos conspiradores e não queria que as suas apreensões perturbassem a tranquilidade daqueles que passara a ver, talvez com exagerada presunção, como o seu povo.
Quando se voltou, contudo, na direcção da sua casa, foi detida por um olhar intenso e luminoso que se fixava no seu, fitando-a com uma suave interrogação na sua expressão. Não sabia há quanto tempo ele estaria ali, mas, ainda que nada dissesse, sabia que ele compreendia os seus medos e que a preocupação que o seu rosto reflectia era, para ele, um maior motivo de perturbação que quaisquer conspirações que pudessem tramar.
- Tranquiliza-te, Amara. – disse Mordechai, suavemente – Sei que as tuas apreensões são plenamente justificadas pela situação, mas, ainda assim, a tua preocupação não vai mudar o que tiver de acontecer.
Amara assentiu.
- Eu sei. – murmurou – Mas pergunto-me se existirá perdão para a responsável por todas as vidas sacrificadas em nome da minha vingança…
- É mais que vingança, caríssima. – interrompeu Mordechai, colocando-lhe um dedo sobre os lábios – E, ainda que as tuas dúvidas te tentem persuadir do contrário, tu sabes que é verdade. Se a tua luta não fosse justa, não terias em teu redor os fiéis que tens.
Levemente, Amara sorriu.
- E tu, Mordechai… - disse – Tu, que me conheceste noutra vida, noutro nome… Quando eu não era mais que uma criança demasiado protegida pelo carinho dos meus pais. Que tinhas uma vida tão grande pela frente, jovem senhor de um grande nome e de um território próspero, mas que nunca deixaste de ser os meus olhos no mundo que me expulsou, que me procuraste para lá das fronteiras da nossa antiga vida, e que, agora, também foste condenado… Diz-me, lorde Mordechai Gray. É, ou não, verdade, que foi pela tua ligação a mim que foste condenado?
Mordechai hesitou, relutante em admitir aquilo que, ainda que nunca devidamente selado pelo nome da sua líder, não deixava de ser um facto incontornável.
- A verdade, meu amigo. – insistiu Amara, compreendendo as suas apreensões – Diz-me a verdade.
Lentamente, ele respondeu com um gesto afirmativo.
- A verdade – disse – é que houve uma voz que sussurrou aos ouvidos do rei o quanto eram suspeitas as minhas divagações pela fronteira. Não tardou muito até me acusar de conspiração e pedir o meu julgamento, mas… Ainda que eu tenha assumido o negro dos condenados, a verdade é que os Raven nunca me tiveram nas mãos. Não creio que estivesse vivo caso isso tivesse acontecido. O rei tem os seus informadores, mas eu também tinha os meus, e fui avisado a tempo de que fora decretada uma ordem de prisão contra mim.
- Uma voz que sussurrou aos ouvidos de Amon Raven… - repetiu Amara, intrigada – E, que, presumo, terá também garantido, com a tua condenação, a posse das tuas propriedades.
Mordechai assentiu.
- Caledon? – perguntou Amara, bruscamente, como se o nome que acabava de pronunciar fosse uma espécie de temível maldição.
- Caledon. – confirmou Mordechai, vendo, perturbado, a forma como um gélido sorriso ganhava, subitamente, vida nos lábios da sua amiga de sempre.
Lentamente, com a formalidade que usaria perante uma corte, Amara estendeu-lhe a mão para que ele a tomasse.
- No meu mundo, – prometeu, enquanto ele aceitava o seu gesto – voltarás a ser lorde Mordechai Gray. E, seja justiça ou vingança o nome do estandarte que seguramos, o sangue dos Raven há-de manchar o chão de Lithian.
» Quanto ao de Caledon… - acrescentou – Não terei paz enquanto não o vir nas minhas mãos.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Capitulo II (Parte 5)

Na trilha que separava as montanhas Göol do território de Lithian, revelava-se um mosteiro conhecido como Herä. Este dava abrigo a vários padres ou pessoas que desejavam estar afastados do mundo, que procuravam a sua paz interior. Entre eles, encontrava-se o presbítero responsável pela cerimónia real do dia seguinte, o padre Ardheus. A distância do mosteiro até ao castelo ainda obrigava a uma viagem de algumas horas, pelo que o padre preparava as coisas para ainda começar a sua viagem de madrugada. Pensativamente, o sacerdote pançudo e de baixa altura arrumava as coisas de que precisava na sua pequena mala preta. A roupa e as substâncias proibidas eram excessivas, o que conduziu a uma luta pessoal entre o padre e a sua mala. Furioso com a mala por esta não fechar, decidiu-se por saltos, não muito altos pois o seu peso não lhe autorizava grande gincana na gravidade, mas com um vigor capaz de exibir ao obstinado objecto quem mandava.
Subitamente, a porta do seu quarto abriu-se, provocando a sua queda de cima da mala, e levando a que se estatelasse no chão. Rapidamente, Ardheus elevou-se do solo, tentando ocultar o embaraço que a situação lhe proporcionava.
- Padre Ardheus, está pronto para seguir? – questionou a Superiora Eneida.
- Sim, sim. – respondeu ele, atrapalhado – Já tenho a mala pronta.
Eneida olhou para a mala e abanou a cabeça reprovadoramente.
- Pelo inchaço do objecto, cogita permanecer lá um mês e não um simples fim-de-semana.
- São tudo coisas estritamente necessárias. – afirmou o padre, já recomposto.
- Sabe, – contrapôs a Superior – o que sempre ensinamos neste mosteiro é a usar o mínimo possível. Há quem tenha menos que nós.
- Animais do mato. – respondeu Ardheus com uma voz mais alta – São animais do mato. Vis e traidores que nem se lembram de ir às nossas cerimónias religiosas.
- Padre Ardheus! – exclamou a Superiora, subitamente imperativa - Nós não julgamos. Nós não criticamos. Nós não difamamos. É assim que funciona este mosteiro e sabia perfeitamente disso quando para cá veio. Tenho pleno conhecimento de que simpatiza com uma vida mais abundante, mas aqui ninguém deseja isso. Aproveite a sua viagem para reflectir se vale a pena regressar e, caso conclua que a nossa vida simples e sem luxos não o satisfaz, use as suas influências conseguidas por favores dos quais preferia não ter conhecimento e fique por lá.
- A minha dedicação a algo maior não tem que obrigar-me a viver uma vida de pedinte – explicou Ardheus, insinuante – Quem sabe não seguirei o seu conselho…
Antes de fechar a porta do quarto do padre, a Superiora deitou-lhe um último olhar zangado e frio.
- Não coma é muita carne nessa vida de prosperidade. - disse - Mais uns quilos que engorde e provavelmente resolvem servi-lo como prato de jantar.
Eneida bateu a porta com força, largando um Ardheus desgostoso e irritado, que, tentando acalmar a sua cólera, vasculhou na sua mala até encontrar uma pequena garrafa de vinho.
- Que o sangue de algo superior me dê animo para o que aí vem. – suspirou, abrindo a garrafa.

Fortuna. Era este o local em Lithian onde os nobres procuravam mulheres para momentos prazerosos. Em Fortuna encontrava-se a mulher mais bonita do reino e por essa mesma razão a mais apetecida, Ceres. Já muitos haviam perdido a vida por ela, muitos confrontos haviam sucedido entre nobres casados mas hipnotizados pela figura de Ceres. Era este, pois, o sítio ideal para a noite boémia de Adhemar e Gälart.
- Meu primo, – observou Gälart, sorrindo – esta noite será memorável.
- Gälart ,– começou Adhemar, retribuindo o sorriso – não é para te contrariar mas já aqui passei várias noites inesquecíveis. E continuarei a passar, até porque prevejo que quando estiver casado serão noites ainda melhores. Terá mais graça.
Ceres aproximou-se deles, rindo suavemente.
- E por falar em graça… - murmurou Gälart, deleitado.
- O que posso fazer por si, meu príncipe? – perguntou Ceres, sentando-se no colo de Adhemar.
- O que um homem e uma mulher fazem no seu quarto. – replicou este . Serás minha escrava esta noite. As moedas de ouro que entreguei chegam e sobram para as horas que pretendo.
Ceres levantou-se e deu a sua mão ao príncipe.
- Venha.

Gälart não ficou muito tempo sozinho, pois, quase de imediato, uma outra mulher sentou-se à sua beira.
- Olá… – questionou, entusiasmada – O que deseja um tão belo nobre?
- Gosta de poesia? – interrogou Gälart.
- Hoje agradar-me-á tudo o que for do seu agrado. – respondeu a mulher aproximando-se e colocando o seu braço no rosto do primo do príncipe. Este, porém, ignorou o gesto, levantando-se de forma brusca em direcção a outras duas mulheres.

A viagem do padre Ardheus já ia a meio quando se sentiu obrigado a deter-se. Apreensivo, desmontou do seu cavalo e olhou para o céu negro, para ver que sete pequenos corvos andavam em círculos crocitando. Aquele barulho assustador já o perseguia desde o pequeno cruzamento de estradas à saída do mosteiro, mas só agora compreendia a sua origem.
- O que querem? – perguntou o padre amedrontado – Eu não estou morto, seus poltrões! Não aguardem pela minha carne fresca!
Com gestos bruscos, procurou na sua pequena mala a garrafa de vinho e bebeu mais um gole.
- Eu ainda tenho muitos anos de vida! – prosseguiu, guardando a pequena garrafa no bolso da sua batina, ainda que antecipando já que viria a precisar dela mais uma vez.

- Tu sabias que és a mulher mais bonita do reino? – questionou Adhemar.
- É delicadeza sua. – respondeu Ceres, sorrindo.
- Se desejare,s prepararei um quarto para passares noites no castelo. Serás bem recompensada por isso.
- E a sua esposa? – perguntou Ceres, maliciosamente.
- A minha esposa? – repetiu o príncipe, com um sorriso cruel - Ela estará bem entretida com os tricôs.

- Rainha, rainha. – repetia Rómulo batendo na porta – Rainha, rainha.
Com um gemido arrepiante, porta do quarto abriu-se. Por momentos, a expressão desarranjada e sonolenta da rainha assustou Rómulo. Ao fundo, podia ouvir o ruidoso ressonar do rei adormecido.
- Tem que vir à porta. – disse Rómulo - O padre chegou…bêbado!

- A sua poesia é maravilhosa. – afirmou uma das mulheres que estava deitada ao lado de Gälart.
- É sim. – confirmou a outra mulher.
- Duas pérolas foi o que eu encontrei, aqui neste lugar onde nunca pensei, tanto amor achei, duas pérolas pelas quais morrerei. – recitou Gälart, enquanto incitava as duas mulheres a tocarem-se.

- Bêbado! – exclamou a rainha, olhando para o padre – A sua sorte, padre Ardheus, é que não acordei o rei, senão com certeza que a sua cabeça seria deitada aos leões!
- Minha rainha, – respondeu o padre, sorrindo exageradamente – a minha senhora não vê esta noite tão linda? A lua… – os seus olhos estavam esbugalhados – É preciso agradecermos tudo isto! É preciso beber o sangue mais divino…
- Mete o padre debaixo de água fria – disse a rainha a Rómulo – e depois arranja-lhe um quarto. Agora preocupa-me o casamento, mas a seu tempo devido encontrarei um castigo para este untuoso!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Capítulo II (Parte 4)

Também os pensamentos de Delenia se enredavam entre novelos de silêncio, enquanto sob a chuva tormentosa, caminhava em direcção a Vareil, a capital de Lithian, onde deveria cumprir o seu último e derradeiro objectivo.
Tal como muitos dos aliados de Amara Morningstar, também ela era uma proscrita, ainda que, contrariamente àquela que seguira, com um motivo bastante válido para o fazer. Nunca deixaria de ostentar no seu rosto as marcas que a haviam guiado ao crime, as cicatrizes que, com um ferro ao rubro, o homem a quem fora entregue lhe marcara no corpo. Demasiadas vezes o monstro a quem fora dada em casamento julgara, ao fitar os seus olhos atormentados, que ela se quedaria, sofrendo em silêncio ante as suas torturas. Mas naquela noite, na noite em que renegara a sua vida e fugira do reino que consentia com tais crimes, Delenia deixara a sua vingança na forma de uma lâmina cravada sobre o corpo do seu hediondo marido.
Quando cruzara a fronteira de Lithian, Delenia julgara ter pela frente uma existência de fuga, mísera e solitária, mas o que encontrara fora bem diferente. Encontrara Amara, e, com ela, uma promessa de lealdade, de tranquilidade e de vingança. No tranquilo refúgio de Varin, Delenia tornara-se forte e hábil, e, por dever a Amara a vida e a força que, um dia, lhe permitiria derrubar todos os homens, que via semelhantes à besta que repetidamente a torturara, ganhara para com a sua líder uma eterna dívida de gratidão.
E ali estava, finalmente, a poucos passos da vingança prometida, com a chuva por testemunha da sua persistência e as árvores sombrias como vigias da sua lealdade. Dentro de algumas horas, o sangue de um Raven mancharia as suas mãos e o fogo consumiria as ruínas daquela família. E ela, a assassina, a exilada, estaria na primeira fila para assistir ao fim dos seus inimigos. “Com um sorriso nos lábios”, pensou “e uma espada nas mãos.”

Entretanto, no seu sombrio gabinete, o conselheiro Lothian caminhava nervosamente, de um lado para o outro, tentando, em vão, impor silêncio às suas apreensões. Sabia que, algures na obscuridade, os restantes enviados da conspiração em que se envolveram, aguardavam o momento em que a sua missão seria finalmente cumprida. Ele, contudo, não conseguia silenciar as vozes que, no seu pensamento, lhe murmuravam que o plano de que eram parte não poderia deixar de acabar em fracasso.
Contava-se entre os poucos que conheciam a verdadeira identidade da força que liderava aquela conspiração. Na verdade, fora esse o motivo que levara a que desse a sua lealdade à mulher que se escondia sob a identidade de Amara Morningstar. A razão que a levava a comprometer a sua vida da forma como estava em vias de fazer, contudo, era outra. O seu ódio pelos Raven estendia-se, tal como o de Amara, à figura de Caledon Westraven, a quem, como recompensa pelos serviços prestados ao reino, fora cedido o título que anteriormente lhe pertencera, bem como as suas propriedades. Afinal, como o próprio rei dissera, enquanto o despojava de tudo o que tinha, um conselheiro deveria viver para o reino e não para as suas próprias posses.Silenciosamente, Lothian fitava o pequeno frasco que segurava nas mãos ligeiramente trémulas, um pequeno recipiente de vidro, completamente preenchido por um líquido escarlate, tão rubro como o sangue que, no dia seguinte seria derramado. O que precisava de saber, contudo, para obter alguma tranquilidade antes do dia seguinte, não seria revelado senão quando os acontecimentos se precipitassem. Que sangue mancharia as pedras de Vareil quando o próximo crepúsculo descesse...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Capitulo II (Parte III)

A noite avançava vagarosamente, gris e lúgubre. A chuva parou, mas o vento aumentou o seu brado, não deixando ninguém indiferente.
Nas montanhas de Göol, Ofélia encontrava-se no acolhimento da caverna de Luath. Os seus longos, sórdidos e desarranjados cabelos negros esvoaçavam, levados pelo vento, e os seus olhos estavam cravados no céu lavado de estrelas com a lua como paisagem de fundo.
- Esnot oudire corvoe rapressa! Esnot oudire corvoe rapressa! – repetiu a bruxa, com o braço direito levantado e o punho fechado.
Alguns instantes depois, um corvo anafado porém expedito irrompeu no céu, sendo custoso distingui-lo da própria noite. Empoleirou-se no punho da bruxa e crocitou, aparentando uma perturbação invulgar.
- Daei boslet anima vet? – questionou a bruxa.
Conservando-se sobre a mão tapada de Ofélia, o corvo bateu as asas três vezes.
- Dimana atarterei escozine?
A bruxa abriu a sua mão e o corvo grafou, picando com o seu bico, o nome Amara, desaparecendo depois no ar. Ofélia reteve o seu olhar na palavra escrita na sua mão, sem se importunar com o sangue que escorria da sua mão devido às crivadas do corvo.

Elara tinha conhecimento que a pequena sala ao lado do quarto do seu irmão era o sítio perfeito para rever o plano do dia seguinte. Afinal, Adhemar havia saído com o seu primo para uma noite de boémia antes do casamento. "Bendita a estupidez do meu irmão", não se coibiu de pensar. Com todo o cuidado possível, Elara juntou na pequena sala Rómulo e mais dois homens.
Travai Raillart e Archat Waillium eram os dois melhores arqueiros do reino. O primeiro odiava o rei e foi fácil de convencer a participar no plano. O segundo, desde sempre um membro fiel do exército do rei, desejava deixar os seus serviços para partir com a sua amada Anna para territórios mais calmos. Sabia, contudo, que, se o fizesse, seria acusado de traição e provavelmente morto sem qualquer julgamento. A morte do rei e a liberdade de Archat mais algumas moedas de ouro. Quando Rómulo anunciou à princesa os desejos dos arqueiros ela sorriu.
- Convoquei-vos hoje por uma simples razão – começou Elara – Não quero falhas amanhã! Não é aceitável! Qualquer erro será fatal e evitará que eu suba ao trono. O meu pai e o meu irmão têm que morrer amanhã!
- Quer rever o plano? – perguntou Archat.
- Sim, sim, quero. – respondeu Elara - Não posso permitir condescendências. Desgraçadamente, estou nas vossas mãos e não nas únicas em quem confio…as minhas. Tenho a esperança de não ter pactuado com dois arqueiros incapazes…porque se tudo não correr da forma que desejo, podeis estar certos de que as moedas de ouro serão uma utopia e a vossa morte uma certeza! Da forma mais horrenda que a minha mente tiver a capacidade de idealizar!
- Estaremos à hora marcada nas torres do castelo, desde que o cavaleiro Rómulo use as suas influências para deixar deserta a porta que nos levará às torres. – explicou Travai – Eu apontarei ao seu irmão, enquanto Archat terá como alvo o seu pai… Tudo acabará em segundos.
- E se forem apanhados? – interrogou Elara.
- Aproveitaremos a confusão para a fuga, porém, se formos presos não indicaremos o seu nome. Sabemos que depois de estar no trono nos soltará e pagará o que é devido. – sorriu Archat.
- Como poderemos confiar na sua palavra? Que garantias temos que depois do trono nos soltará? – questionou Travai.
Elara sorriu, tirou um medalhão que carregava ao pescoço e entregou-o ao arqueiro.
- Guarda isto. É um medalhão de Azhar, o meu trisavô, o único Raven digno do seu apelido. Acredites ou não, é algo de grande valor para mim. Devolver-mo-ás através de Rómulo se o plano correr bem, ou quando fores liberto caso sejam apanhados.
- Vamos embora então, antes que o seu irmão chegue. – disse Archat.
Archat e Travai saíram da sala deixando Elara sozinha com Rómulo.
- O medalhão…
- Há coisas mais importantes agora – interrompeu Elara – Caso eles sejam presos, cortarei as mãos dos dois se não me entregarem o medalhão. Para onde vão eles depois do golpe?
- Para as montanhas de Göol. Uma pequena caverna bem distante da bruxa. – respondeu Rómulo. – Mas se for seu desejo, por mais umas moedas de ouro eles podem visitar a bruxa na sua caverna para a eliminar.
- Já te disse que ela é mais importante viva do que morta. Não será obstáculo, muito pelo contrário. - Elara abriu a porta e fez sinal a Rómulo para sair. – Vamos, antes que nos vejam por cá.

domingo, 9 de novembro de 2008

Capítulo II (Parte 2)

Naquela noite, o sono faltou-lhe, afugentado pela sombra de todos os acontecimentos iminentes. Era, agora, somente uma questão de tempo até que os seus inimigos tombassem sob a força da sua mão vingativa, mas decretada a pena de morte, o peso da decisão que tomara assombrava-lhe o pensamento.
Levemente, Amara suspirou, deixando o calor da sua cama, para se levantar, ainda outra vez, em direcção à janela do seu quarto. Ali, os seus olhos encontraram a chuva, e, mais uma vez, o seu pensamento derivou até ao passado, à recordação do porquê de ter decretado a morte do seu próprio irmão.

Ainda se recordava da farsa que o seu irmão montara após a decisão do rei. Como familiar destroçado e entristecido, Caledon fizera questão de a acompanhar até à fronteira de Lithian, ostentando perante todos uma fronte chorosa e desolada, que, esporadicamente, quando se encontrava a sós com o olhar da sua irmã, se rasgava no esboço de um sorriso cruel. E depois, quando o lugar do exílio chegara, Caledon afastara-se, sem discursos, como se a dor o ferisse demasiado para o ferir, mas com uma simples frase murmurada, capaz de rasgar com mais precisão que uma espada.
- Devias ter ficado calada.
No silêncio dos bosques que delimitavam a passagem para o reino de Agaloth, Amara divagara, sozinha com as suas lágrimas e a sua raiva, encontrando na obscuridade do espaço uma negrura igual à que a invadira. E, enquanto corria, desolada e desesperada, amaldiçoando em silêncio a figura do seu irmão, conjuntamente com a da família que a condenara, a jovem exilada deparou-se com o sinal que buscava. Sem saber para onde se dirigia, Amara encontrara, diante de si, a forma do abismo.
Por um momento, as pernas tremeram-lhe, hesitantes acerca do que a sua mente lhes ordenava. Depois, contudo, a decisão tornou-se força, e Amara avançou um passo, ficando, em seguida, imóvel no limite da morte, à espera do sopro final que a lançaria no nada.
Não foi, contudo, a morte quem veio ao encontro de Amara, mas sim uma voz calma e suave, que, de alguma distância atrás de si, lhe dizia:
- Não o faças. Talvez haja para ti um caminho maior que esse que escolhes.
Lentamente, Amara recuou um passo, voltando-se depois para o seu interlocutor, que, surpreendentemente, a fitava com o claro verde de um olhar pleno de bondade e com um suave sorriso nos lábios.
- Não existe mais nada para mim. – respondeu – Tudo o que eu era e tudo o que eu amava morreu.
O homem assentiu.
- E quem crês que to roubou? – inquiriu.
O rosto de Amara contraiu-se num esgar de repulsa.
- Os senhores de Lithian. – disse – A família real. E o meu irmão.
Um leve sorriso brotou nos lábios do homem.
- Talvez não o saibas, - explicou – mas não és a única vítima dos Raven. São demasiados os que vêm, em fuga ou exilados, para fugir da arbitrariedade dos senhores de Lithian. Eu sou um deles. Mas não escolhemos morrer. Optamos, em vez disso, por lutar contra o inimigo. E esperamos. Tornamo-nos fortes, aprendemos com o conhecimento uns dos outros, e aguardamos, tranquilamente, a chegada de um líder que nos conduza até à vingança e à reparação dos crimes cometidos.
Amara assentiu.
- Mas eu não sou ninguém. – disse – Não tenho nada para ensinar.
- Talvez não. – concordou o homem – Mas talvez tenhas muito para aprender e o teu temperamento poderá ensinar-nos a lutar. Os rumores do teu exílio chegaram até aqui, jovem de sangue nobre. Sabemos quem és.
- Sabeis que me exilaram pelo assassínio dos meus pais? – perguntou Amara, provocadora.
- Do qual serás, certamente, inocente. Conhecemos a forma de agir dos Raven e as conspirações do teu irmão. Consigo imaginar quem será o responsável.
Em silêncio, Amara assentiu.
- Existe, aqui perto – prosseguiu o homem – uma pequena aldeia, chamada Varin. Há muito tempo que o rei de Agaloth sabe que aí se reúnem os exilados e os conspiradores, mas a verdade é que ele odeia os Raven tanto como nós e, portanto, não interferirá em nada que façamos. Vem comigo, e conquista connosco a oportunidade de derrubar os teus inimigos.
- Mas quem me ensinará a viver no exílio? – perguntou Amara.
- Eu. – respondeu o mestre – Eu estarei contigo para que aprendas.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Capitulo II (Parte I)

Capitulo Segundo

Um corvo apoucado e esguio crocitava em cima de um arvoredo que separava os jardins mal tratados que circundavam o castelo da floresta jubilosa que se situava do lado direito deste, onde o rei e o seu filho habitualmente caçavam. O descarnado pássaro anunciava a aproximação da noite. Porém este espaço de tempo entre o crepúsculo da tarde e o crepúsculo da manhã era dissemelhante de todos os outros, pois, no dia seguinte, desenrolar-se-ia o enlace pelo qual todos aguardavam, o casamento do príncipe, a sua união com Isís Razza, herdeira de Arus Razza e da sua mulher Yasmin.
Arus era notabilizado pelo seu engenho na construção e trato dos apetrechos de combate mais aperfeiçoados, as espadas mais resistentes, as flechas mais venenosas, as armaduras mais elegantes coordenando o conforto e a sua utilidade. Reconhecido em todos os reinos e somente obstado de comercializar em Castella, Arus Razza tornara-se mais rico do que aqueles que procuravam os seus serviços, adquirindo os melhores terrenos do reino e subornando todos aqueles que tinham conhecimento do seu segredo.
Todavia, a noite não aparentava ter alguma afeição especial pelo dia que se avizinhava. O ar era frio afugentando as pessoas para o conforto de suas casas. As gotas de chuva começaram por cair timidamente, sinalizando os passeios de pedra que ligavam o castelo às restantes casas, mas, à medida que o tempo se filtrava em direcção à cerimónia real, as pequenas e acanhadas gotas de chuva multiplicaram-se, intimidando até um cão mais corajoso que ainda vagueava na rua. As nuvens perderam a sua pureza e deu-se lugar à explosão das mesmas com raios tenebrosos. Um dos raios atingiu o arvoredo onde o corvo se encontrava. O pássaro já sem vida caiu em breve tempo ao chão, os seus olhos petrificados em surpresa pela morte veloz que o atingiu.

- Como chove lá fora. É mau prenúncio. – afirmou a rainha. – Odeio quando chove antes de um casamento. O último casamento onde me lembro de um tempo assim foi de um primo do rei. Morreu numa batalha…já faz dez anos.
Isís que se encontrava frente a um espelho a apreciar o seu vestido, fitou a rainha incrédula.
- Não agoire, minha rainha. O meu desassossego já nem me tolera uma noite inteira de um bom sono.
- Não julgues que desejo o teu mal, antes o oposto. É por isso minha obrigação acautelar-te.
- A rainha examinou minuciosamente todos os pormenores. É necessário tanta preocupação?
- Os avisos da natureza servem para nos alertar para o imponderável.
A rainha saiu do quarto, deixando Isís na companhia de Ada, a escrava.
- A rainha tem razão. – começou Ada – A natureza tem uma força muito mais poderosa que qualquer humano. O rei pode ser um deus com marionetas nas mãos, e nunca acredite que lhe pode fazer frente. Mas perante a natureza não possui força alguma. Somos todos e sem excepção fantoches de algo maior…
Isís sentou-se na cama, colocou as suas mãos sobre os joelhos enquanto os seus olhos passeavam pelo chão de pedra mal tratada.
- Gozo do noivo perfeito, - disse - de um vestido magistral, de um castelo fabuloso. Não há possibilidade de correr mal, recuso-me a acreditar que todos os esforços que conduzimos para o êxito da cerimónia sejam prostrados por desígnios da natureza.
- Não se aborreça comigo, princesa.
- Não vou. Apenas deixa-me sozinha.
Ada obedeceu e saio do quarto, largando Isís absorvida na sua inquietação.

Naquele mesmo instante o rei permanecia na sala de armas do castelo. Com um olhar desatento, errava entre as espadas e lembranças de triunfos antigos, enquanto, diante de si, o seu filho Adhemar se divertia, movendo em círculos uma pequena navalha com a qual desenhava na mesa de madeira o cunho do reino.
- A tua serenidade surpreende-me. – afirmou o rei – Julgas que amanhã será alguma zombaria?
- Amanhã será um dia proveitoso. – respondeu Adhemar – Porque devo estar apoquentado? Não é um dia que me interesse. Apenas negócio.
- A tua noiva raciocina de forma diferente. A sua ingenuidade consente a ter como verdadeiro o teu afecto por ela.
Adhemar largou a navalha que tombou sobre a mesa sem ruído.
- Meu pai. A única mulher que me é digna de alguma consideração é a minha mãe. Por ser mãe e rainha. A utopia da minha inocente noiva não me causa preocupação. O casamento servirá somente para a união eterna entre o castelo e o ferreiro mais eficiente do reino não permitindo a deslocação de Arus Razza para longe dos nossos destinos. Continuarei a vida que tenho tido, a vida boémia que me corre no sangue. Não adianta faltar à verdade, pois sabe perfeitamente que não serei leal à mulher que desposarei amanhã.
Amon abriu a porta de saída e alertou o filho antes de sair.
- Encobre as tuas conquistas e dissimula as noites sem juízo. É o teu dever como filho do rei e futuro marido.

sábado, 1 de novembro de 2008

Os Filhos de Raven - Capítulo I (Parte VI)

O frio do vento acariciava-lhe o corpo, como a gélida carícia de uma mão invisível. Sobre a sua cabeça, o céu obscurecido pressagiava tempestade, mas, sentada no chão junto ao lago, Amara parecia nem sequer notar as ameaças da natureza. Estava demasiado perdida nos seus pensamentos para o fazer.
Nos labirintos da sua mente, a necessidade de um planeamento estratégico misturava-se com a urgência das suas emoções aprisionadas e o seu espírito parecia vacilar ante o peso da sua responsabilidade. Ali, no silencioso refúgio de Varin, no exterior de Lithian, estava segura, uma vez que o rei daqueles territórios declarara não se envolver nos confrontos dos Raven. Ainda assim, agora que o confronto ameaçava suceder, Amara sabia que, eventualmente, o seu nome seria referido e, se por conspiração não seria entregue, pelas acusações que o passado lhe colocara sobre a cabeça, talvez a situação fosse diferente.
Preparava-se um casamento na corte dos Raven, um casamento que deveria ser rubro de sangue. Sabia que aquela infame família devia morrer e desejava que isso sucedesse, mas, ainda assim, hesitava, não por piedade para com o seu inimigo, mas para com um dos soldados que combatiam no campo de batalha adversário. O seu irmão, mil vezes maldito, mas, ainda assim, sangue do seu sangue.
Ainda naquele momento, apesar dos anos decorridos sobre a desavença, Caledon Westraven habitava na sua mente, o herdeiro da fortuna da sua família, conquistada e preservada pela mácula da traição. O homem que se atrevia a ostentar o apelido dos seus pais, mesmo enquanto profanava a sua memória, depois de, por ambição, ter condenado tudo quanto haviam construído.

Nunca esqueceria aquele momento, quando, na nocturna obscuridade do palácio dos Westraven, bem no centro da corte de Lithian, Amara ouviu um grito rasgar o silêncio nocturno, espelhando um desespero infinito na voz que tão bem conhecia. As suas recordações eram confusas, mas sabia ter corrido em direcção ao quarto da sua mãe, recentemente deixada só pela prematura morte do seu marido, devido a uma misteriosa doença.
Lembrava-se de ouvir os gritos lancinantes que passavam mesmo através da porta cerrada e de, quando se preparava para invadir o espaço, ter sido bruscamente impedida por uma mão que violentamente a agarrava.
- O que se passa? – perguntou ela, revoltada – É a nossa mãe, Caledon! Deixa-me ir!
Caledon riu.
- Deixar-te ir? – repetiu – E permitir que arruínes o magnífico futuro que construí para a nossa família?
Amara debateu-se, mas sem sucesso.
- O que…? – perguntou – Quem?
- Verás. – replicou Caledon – Mas garanto-te que aquilo que contemplas será a nossa fortuna.
No momento em que o jovem nobre pronunciava estas palavras, os gritos silenciaram-se. Poucos segundos depois, a porta do quarto abriu-se, dando passagem a uma figura mascarada que, com as mãos manchadas de sangue, passou em silêncio, sem esboçar mais que um leve aceno na direcção do agora lorde Westraven.
Só então Caledon libertou a sua irmã, deixando que esta corresse para o interior do quarto. Em silêncio, deixou que, na sua inocência, Amara abraçasse, com a força da dor, o corpo ensanguentado da sua mãe vitimizada, torturada pela barbárie e pela luxúria do homem que, evidentemente, fora contratado para a eliminar. Contratado pelo ser desprezível que, com um sorriso nos lábios, observava o violento soluçar da sua própria irmã.
- O que fizeste, maldito? – perguntou esta – Porquê?
- Não é óbvio? – respondeu ele – Porque quero o poder!
- Louco! – exclamou Amara – Julgas que vou permitir que tomes a herança dos nossos pais, sabendo do que fizeste?
- Não tens alternativa, irmãzinha. – declarou Caledon – Olha para ti! Manchada pelo sangue da nossa mãe… Aceitarás em silêncio o que aconteceu e contarás a minha versão da história. Caso contrário, farei com que tu desapareças.
Amara assentiu.
- Pois podes começar já.

Naquele dia, Amara julgou estar perante o momento da sua morte, mas, inacreditavelmente, o seu irmão não o fizera. Queria mais que isso. Queria assegurar que a sua sucessão jamais seria contestada devido à misteriosa morte de toda a sua família e, por isso, escolhera outra forma de a afastar do seu caminho.
Com uma serenidade perturbadora, Caledon surgira perante o rei e apresentara-lhe a sua irmã como a assassina da sua mãe. Acusara-a com toda a ferocidade da mais hedionda violência… e depois chorara. Chorara como se tivesse sentimentos, como se lamentasse a loucura de que acusava o seu próprio sangue, e, amargurado por um fantasma de dor, pediu ao rei que lhe poupasse a vida. Evidentemente, não poderia permitir que ela permanecesse em Lithian, mas se pudesse simplesmente bani-la… Se pudesse mostrar misericórdia para com o seu fiel seguidor…
Fora assim que Amara iniciara a sua luta, sozinha nas solitárias terras de Varin, escondida sobre o fúnebre nome de Amara Morningstar, a amargurada estrela de cada amanhecer de Lithian, até ao dia em que pudesse voltar a ostentar o seu legítimo nome, o nome da legítima herdeira dos Westraven. Calana.
E ali estava ela, agora, sob um céu tempestuoso, incapaz de evitar uma certa apreensão ao sentir eminente o momento de decretar a morte do seu irmão. Mas a sua decisão estava tomada. Não poderia deixar pontas soltas após a extinção do reinado dos Raven, de uma família que, ciente da crueldade do seu irmão, que sabia continuar a martirizar inocentes às ordens da família real, continuava a tolerá-lo como um membro da alta nobreza.
Silenciosamente, Amara levantou-se, seguindo em direcção à casa onde Andros e Mordechai a esperavam. O seu coração fora silenciado. Agora, chegara o momento de dar voz à estratega dentro de si.

- Tomei a minha decisão. – anunciou ela, diante dos olhares expectantes do seu mestre e do seu melhor amigo.
Mordechai assentiu.
- Precisas que faça algo?
Amara respondeu com um gesto negativo.
- Não te vou enviar de volta a Lithian. – declarou – Tu és como eu. Marcado pelo negro dos condenados, dos banidos. Serias reconhecido pelo primeiro soldado que te viste. Não. Por muito que me custe obrigar-te a isto, tu ficarás comigo, nas sombras, movendo as peças do nosso jogo de guerras, não como o rei cobarde que se esconde atrás dos seus exércitos, mas como a sombra que não tem opção.
Mordechai assentiu.
- Se assim o queres… - disse – Mas o que farás?
- Creio – explicou ela – que não teremos outra oportunidade como esta. Os mais capazes de entre nós encontram-se na corte, escondidos e preparados. Delenia espera a minha ordem há demasiado tempo. Creio que chegou a hora de a satisfazer. E o nosso querido conselheiro… tão próximo do rei que este lhe confiaria a sua mísera vida… Creio que não será demasiado difícil derramar o líquido adequado na taça da celebração nupcial.
» Teremos um vingador para cada Raven. Delenia tratará do querido Adhemar, pois é a pessoa ideal para o arrancar da vida num ponto em que ele é o centro das atenções. A melhor lutadora que conheço. Lothian, o conselheiro, tratará de envenenar o rei. Entretanto, Durun e Avalen trataram de Elara e Alessandra. A rainha é apenas uma mulher destroçada, se puderem, trar-ma-ão com vida. Quanto a Elara, sei que é uma víbora escondida sob um rosto de adolescente. Morrerá com os restantes do seu sangue.
Andros assentiu.
- Um plano sensato. – declarou – Mas, perdoa-me que te recorde os teus fantasmas, creio que esqueces alguém.
- Não, mestre. – respondeu Amara – Não esqueci o meu irmão. Nunca esquecerei o que ele fez e, por mais repulsa que me inspire eliminar um dos do meu sangue, Caledon é um instrumento dos Raven e poderia denunciar-nos em caso de fracasso. Tratarei também de enviar alguém para o eliminar. Não… Pensando melhor… Que mo tragam vivo, se for possível. Ainda assim, se não for, não serei eu a chorar a sua morte.

- Não o chorarei jamais. – repetiu Amara, tentando convencer-se a si própria, enquanto, sozinha com os seus corvos, preparava as suas ordens para que chegassem às mãos dos seus seguidores.
Sorrindo levemente, deixou que as suas mãos deslizassem um pouco pelas majestosas penas das fúnebres aves, enquanto lhes colocava a sua mensagem, deixando, depois, que voassem em direcção ao território no inimigo.
Não deixava de ser irónico, pensou, aquilo que estava a fazer. Eram os corvos a voz da sua mensagem, corvos que decretariam o fim dos seus inimigos, negros corvos contra os repulsivos Raven. O augúrio de uma morte anunciada, que talvez expulsasse de Lithian a sombra da sua tirania, mas que nunca acalmaria os fantasmas do seu coração.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Os filhos de Raven - Capitulo I (Parte 5)

Aproveitando a escuridão da noite, Elara decidiu visitar a bruxa Ofélia para resolver a questão que a perturbava. Nada nem ninguém poderia interferir no seu plano, não depois de tanto esforço e de tantas noites acordada acertando todos os pormenores. A poucos dias do casamento do seu irmão a bruxa Ofélia era das poucas pontas soltas que poderiam destruir o seu plano.

A caverna de Luath situava-se nas montanhas Göol, montanhas essas que separavam o reino de Lithian da floresta obscura e de onde se contavam as mais horrendas histórias, conhecida por Nigerius. Porém a caverna de Luath distinguia-se perfeitamente na cordilheira de Göol. Além de se situar nas proximidades de Lithian era coberta por uma erva diferente de todas as outras. Não era verde como a normal, nem sequer castanha quando seca durante a época de calor. Esta erva que circundava a abertura da caverna de Luath era negra, mais negra que a noite que a envolvia.
Desde séculos que a caverna era conhecida por abrigar bruxos e feiticeiros. No inicio servia-lhes como refúgio, pois estes eram perseguidos para serem queimados na fogueira, um pequeno espectáculo que atraía toda a nobreza do reino. Mais tarde, contudo, um rei chamado Azhar, bisavô do rei presente, Amon, encontrou uma forma de utilizar os bruxos em seu proveito, e a troca de uma pequena recompensa de cinquenta em cinquenta dias os fugitivos de Luath tornaram-se subalternos do rei, informando-o sobre conspirações e ataques ao reino, além de avisarem sobre as condições favoráveis e desfavoráveis aos ataques que o próprio reino planeava.

Enquanto entrava no sinistro lugar, Elara sentiu-se um pouco indisposta. A erva negra soltava um odor estranho e nada agradável. No início da caverna prolongava-se a noite, acompanhada, desta forma, de sons de morcegos que se fundiam com a sua própria imobilidade, emitindo aqueles seus ruídos perturbadores. Alguns passos depois e já era possível a Elara descortinar uma pequena luz, não a iluminação de uma lâmpada mas sim a luz provocada por uma fogueira. Ofélia encontrava-se de costas para as chamas, observando uma pequena ratazana que vagueava nas suas mãos.

- Quem desliza nas sombras ao meu encontro? – perguntou, com uma voz lúgubre.
- Pára com as frases feitas, Ofélia. – respondeu Elara sem mostrar receio – Sabes bem quem sou e a razão pela qual te procuro. Se não o soubesses, que estaria eu a fazer? Porque me arriscaria na noite se bruxa não fosses? Poupemos diálogos absurdos e tentativas de intimidação, não tenho medo deste ambiente nem do que me possas fazer, pois sabes bem que é comigo viva que mais ganharás. Cortemos nas falas sem nexo e em tentativas de simpatia falsa que somente nos consomem tempo. Tempo valioso para as duas, acredito. Sabes bem o que tenho para oferecer. E é muito mais daquilo que o meu pai algum dia te dará.
- Cem moedas de ouro. – comentou a bruxa, apreciativamente – Realmente duvido que o rei algum dia seja generoso até este ponto. Dez moedas de ouro de cinquenta em cinquenta dias que é com o que o teu gentil pai me paga…não é grande coisa. Porém não é só pela recompensa, apesar de não poder negar que do pecado de ambição sofro, que pretendo ajudar. Na verdade fascina-me toda esta situação. A menina mais mimada do reino, a jovem que é comparada a Vénus pela sua beleza e a uma borboleta pela sua suposta fragilidade planeia escondida nas trevas as mortes do seu pai e do próprio irmão.
- Existem coisas mais importantes que o amor dos meus e as suas patéticas preocupações com o seu rebento mais novo. Eu quero o poder a que tenho direito mas pelo qual teria de esperar décadas pois o meu pai e o meu irmão ainda se encontram à minha frente!
- E a rainha também… - acrescentou Ofélia, provocadora.
- A minha querida mãe é um alvo demasiado fácil para ser obstáculo. – declarou a princesa – Não será agora, mas não demorará muito tempo. Depois do dia do casamento do meu irmão, o caminho estará aberto para mim pois o meu irmão não sairá desse dia com uma aliança no dedo mas sim com uma seta cravada no peito!
- Pelo ouro e pelo prazer que os próximos dias me fornecerão, tens a minha palavra de que nada farei para impedir, e nada contarei. Porém devo prevenir-te. Observas esta ratazana?
Elara observou a ratazana aos círculos na mão esquerda da bruxa.
- Sim…
- Ela anda aos círculos. Não é bom prenúncio. O teu plano poderá ainda ter alguma falha.
- A última ponta solta eras tu. E penso já estar tratado.
- Sim, do que conheces, de facto era eu. Porém Lithian é vasto. E o perigo pode residir até em quem desconheces.
Elara aproximou-se da bruxa, lutando a custo para conter a irritação que a invadia.
- E quem é? Quem é?
- Nada mais consigo dizer. – replicou Ofélia – Toma cuidado!
- Vou partir então.
- Antes de ires, - lembrou a bruxa – há algo que me perturba.
- Outra coisa?
- A reacção de Rómulo. Sei que não será a melhor. Não gostará da nossa união. Presumo que, na sua cabeça, pensou que viesses cá ameaçar lançar-me à fogueira, ou cortar-me a cabeça. Nunca suspeitou que viesses propor-me um pacto.
- Rómulo - interrompeu Elara – é apenas um peão do qual me livrarei assim que possível. Não me levanta preocupações. É apenas um cachorrinho que obedece cegamente às minhas ordens pelo estúpido amor platónico que sente por mim. Entre um feitiço e uma arma, penso que escolherei o primeiro.
Ofélia sorriu.
- É uma escolha plausível.
- Acreditando não na tua fidelidade mas sim na tua ganância parto de volta ao castelo. – completou Elara despedindo-se.

*

No castelo, Adhemar encontrava-se sentado numa das janelas do seu quarto, enquanto o seu primo e melhor amigo Gälart, chegado no fim da tarde daquele dia para passar uns dias no castelo até ao dia do casamento, estava sentado na cama de Adhemar.
- Faltam alguns dias, primo. Nervoso? – questionou Gälart sorrindo.
- Bem sabes que não. – replicou Adhemar - Só quero que acabe o mais depressa possível.
- Eu ficaria nervoso perante a contagem decrescente para a minha vida boémia acabar. Estar uma noite com uma mulher, recitar-lhe uns poemas para a convencer a mergulhar nos nossos lençóis é uma coisa perfeitamente distinta de passar o resto dos dias com ela.
- Ambos sabemos o que está em jogo. Obviamente que não será para o resto da minha vida. Serão meses no máximo. Um pesadelo de meses.
- Ora, e o amor, meu primo? E o amor? – perguntou Gälart ironicamente.
- O que contas na tua poesia não é o que tu pensas. Se nas tuas odes homenageias o amor, no dia a dia o teu amor são vários e não um só. E é isso também que eu penso do amor. Há muitos, e em cada dia tentarei conhecer um diferente.
Adhemar levantou-se.
- Meu bom primo, – sugeriu o príncipe sorrindo - deixemos estas conversas fúteis e vamos até à adega real experimentar a colheita de este ano.

*

No quarto do rei, Amon e Alessandra preparavam-se para se deitar.
- Ofereci o meu vestido de casamento a Ísis. Estará linda. – contou Alessandra, mostrando felicidade.
- Porque me contas o que não me interessa? – interrogou Amon, irritado.
- É o casamento do teu filho.
- E é algo que não quero saber. Será uma cerimónia útil e apenas isso.
A rainha sentou-se na cama.
- Lembras-te do nosso? Foi um dia memorável.
O rei agarrou a rainha pelo pulso da mão direita e levantou-a bruscamente.
- Eu não quero saber! Percebe de uma vez que tu não tens direito sequer a olhar para mim! Não és nada! És um objecto pura e simplesmente! És ridícula! – exclamou largando-a bruscamente no chão. – Agora despe-te que é para isso que partilhas este quarto comigo.
*

Rómulo vagueava de um lado para o outro em frente à porta do quarto da princesa Elara. Estava inquieto com a demora até que esta surgiu perante ele.
- Já está tudo tratado. – afirmou a princesa.
- Espero que as suas ameaças tenham sido aquilo que aquela coisa merece. – disse Rómulo.
Elara sorriu abrindo a porta do quarto.
- Não te preocupes, meu querido Rómulo. Ela não se intrometerá nos nossos planos. – respondeu Elara entrando no quarto e fechando a porta.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Os Filhos de Raven - Capítulo I (Parte IV)

Não conseguiu conter a emoção ao reconhecer o cavaleiro que, lentamente, descia da sua montada, como se demasiado exausto para se suportar no seu próprio corpo. Mordechai, o seu amigo de infância e uma das suas melhores fontes no interior da corte dos Raven vinha ao encontro do seu refúgio, coberto pelo negro dos condenados e pela sombra de uma expressão demasiado preocupada para disfarçar.
Dominada pela perturbação, Amara correu ao seu encontro, acolhendo-o nos seus braços com a intemporal ternura da sua relação, tão forte como se apenas no dia anterior se tivessem separado. Depois, os seus olhos encontraram os dele, e um breve sorriso de alívio surgiu nos seus lábios ao ver que, ainda que tudo o mais estivesse comprometido, a segurança do seu querido amigo não o estava.
- Querido, querido Mordechai… - sussurrou, enquanto o sentia contra o seu corpo – Quando me anunciaram uma condenação, temi que tivesses morrido.
O cavaleiro sorriu levemente.
- Como vês, - respondeu – estou bem. Mas não creio que algo de tão simples deva ser motivo de alívio, quando tanto está em jogo.
A expressão de Amara moldou-se numa máscara de severidade.
- O que aconteceu?
- A segurança na corte de Lithian foi bruscamente aumentada. À medida que o casamento do herdeiro se aproxima, a paranóia de Amon agrava-se e, como sabes, ele tem modos de a satisfazer. Perdões foram concedidos em troca da traição e a verdade é que vários dos nossos mudaram de lado.
- Estamos perdidos… - murmurou Amara.
- Não. – interrompeu Mordechai – Sabes que são muito poucos os que podem chegar até ti e esses acreditam na tua causa.
- Na nossa causa. – corrigiu-o ela.
- Seja. Nenhum de entre os que te conhecem te traiu ou trairá. Mas muitos deles poderão ser denunciados, como eu fui, e terão de fugir ou morrer. Está preparada para receber más notícias a partir de agora.
Amara assentiu.
- Não deixarei de o estar. – declarou – Mas garanto-te que, em devido tempo, vingarei ou compensarei todos aqueles que me seguirem nesta causa. Sabes que é justa, não é verdade?
- Evidentemente. – concordou Mordechai.
- Vou precisar que me contes tudo sobre esse casamento. – concluiu Amara – Torna-se claro que precisarei de tomar uma atitude. Mas antes quero que repouses. Apenas consigo imaginar o que terá sido para ti percorrer toda a distância desde a capital em compasso de fuga.
- Amara, eu posso…
- Não. – interrompeu ela – Não… Quero-te recuperado e pronto para o que vier quando a tempestade chegar. Afinal, és tu quem detém a minha máxima confiança… - acrescentou, num inesperado laivo de ternura – Descansa. Também eu preciso de meditar sobre o que vou fazer.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Os filhos de Raven - Capitulo I (Parte III)

- Aquela bruxa velha! – exclamou Elara – Ela vai estragar tudo!
Elara, semente mais nova da dinastia Raven, caminhava, nervosamente, de um lado para o outro, numa pequena sala do castelo, diante do olhar de Rómulo.
- Se ela abre a boca os nossos planos serão arruinados. – comentou o guerreiro com asco.
- Bem sei que o meu bom pai acreditará na sua frágil e inocente filha. Aquela que não se sabe proteger. Aquela que é protegida pelo guerreiro mais valente do reino – Elara olhou para Rómulo, sorrindo – Mas qualquer atraso no nosso plano será meio caminho andado para o fracasso. E eu abomino essa palavra! A nossa estratégia tem imperiosamente de ser colocada em prática no dia do casamento do meu querido irmão!
Rómulo tirou a sua espada da bainha e ajoelhou-se perante a princesa mostrando a arma.
- Se a princesa assim o desejar, terei todo o prazer em apagar do nosso destino tão incómoda criatura.
Elara andava agora à volta do cavaleiro.
- Bem sei do teu ódio por Ofélia. E é exactamente por essa razão que não posso permitir que faças tal coisa. A bruxa morta seria menos um estorvo, é verdade, porém provavelmente será mais útil viva. Se eu te ordenasse apenas para a amedrontar tenho a certeza que amanhã estarias diante de mim ajoelhado não mostrando uma espada, mas sim a cabeça da bruxa. Inventarias uma desculpa absurda qualquer, que ela tinha tentando enfeitiçar-te, que ela te tinha atacado ou prometido mal ao reino. Pois não, não quero que faças nenhum gesto. Ficarás no castelo organizando ou reorganizando o resto do plano para que nada falhe. Eu própria me deslocarei à Caverna de Luath para falar com ela.
Rómulo olhou para ela, consternado.
- Sozinha? Não posso permitir. O rei…
Elara interrompeu.
- Quer que sempre me acompanhes porque eu sou uma jovem indefesa. Bem sabes que não é verdade. Se ele questionar dirás que estou no meu quarto a repousar e não quero ser perturbada.
- Assim será. – respondeu Rómulo, relutante.

*

Entretanto a rainha encontrava-se com a futura nora nos futuros aposentos da mesma.
- Ainda bem que chego em momento de tão crucial importância.
- Não era preciso incomodar-se, minha rainha. Já tenho alguns vestidos de noiva dos quais particularmente gosto. – disse Ísis, apontando para os vestidos em cima da sua cama.
Alessandra olhou para os vestidos com um ar reprovador.
- Não, não, não. Esses vestidos não merecem tal honra. Não é qualquer pedaço de trapos que entrará na Igreja para se unir ao meu filho.
A rapariga baixou a cabeça.
- Ergue-te! – exclamou a rainha - Serás princesa! Não podes rebaixar-te. Não quero que nunca mais faças esse gesto! É uma vergonha para a família Raven! Nós somos a família real! E é um vestido real que levarás ao casamento. Livra-te desse lixo todo e depois dirige-te ao meu quarto. Lá estarei à espera com o vestido que levarás no dia mais feliz da tua vida.
A rainha saiu do quarto deixando Ísis, aturdida, olhando para os vestidos.

domingo, 19 de outubro de 2008

Os Filhos de Raven - Capítulo I (Parte II)

Amara tinha nos olhos o fulgor da tempestade e no rosto a severidade dos perdidos. Como um vulcão, nunca escondia as suas emoções, nem mesmo perante os inimigos, e a beleza dos seus cabelos de fogo, misteriosos como as trevas do seu olhar, reflectiam a sua personalidade de líder incontestável.
- Como é possível – dizia, exasperada, enquanto caminhava de um lado para o outro na sua pequena casa – que ninguém faça o menor gesto para avançar com o plano? Serei eu a única interessada em restaurar a tranquilidade de Lithian?
- Acalma-te, Amara. – respondeu o mestre – Sabes que as coisas não são assim tão simples. Tens noção de quantas vidas apostas no teu jogo de guerra? Se houver a menor falha, estaremos todos mortos ao amanhecer do dia seguinte.
Amara suspirou.
- Eu sei, mestre. – respondeu – Simplesmente irrita-me que o tempo passe tão devagar.
Andros sorriu. Não o surpreendia, de todo, o comportamento intempestivo da sua discípula. Afinal, o seu ódio pelos Raven era algo de visceral, inviolável. Como poderia ser de outra forma, depois de tudo o que estes lhe haviam feito?
- Creio – disse – que necessitas de um pouco mais de tranquilidade, Amara. E entendo que não é fácil para ti, enquanto o reino treme sob o peso das conspirações, ficar aqui, em Varin, à espera que as nossas forças se reúnam. Ainda assim, precisas de ter paciência.
- Terei paciência. – declarou Amara – Mas talvez ajudasse um pouco se as nossas fontes nos trouxessem novidades…
Nesse momento, uma criança entrou pela casa adentro, apressada e ofegante.
- Que se passa, Mirian? – perguntou Andros, dirigindo-se à pequena rapariga de cabelos emaranhados e olhos de azul celeste.
- Vem aí… - balbuciou esta – Vem… Vem aí um cavaleiro.
Amara assentiu.
- Viste as armas dele?
- Não traz armas. – respondeu Mirian – Vem completamente de negro e… Parece apressado.
Andros anuiu.
- Um condenado em fuga… - murmurou – Provavelmente, um dos nossos. Teremos sido descobertos?
- Que os deuses tenham misericórdia. – replicou Amara – Se isso aconteceu, não nos resta salvação.
» Mas vamos. – declarou, afastando, com as suas palavras, a sombra da espada que pairava sobre as suas cabeças – Vejamos quem é esse cavaleiro e o que tem para nos dizer.

Os filhos de Raven - Capitulo I (Parte I)

Capitulo Primeiro

O corvo representa uma das espécies de pássaros de maiores dimensões. Vivem em bandos com estrutura hierárquica bem definida. São aves que exibem sinais de inteligência, planeamento e comunicação entre os mesmos. Também são conhecidos por poderem ser necrófagos. Em inglês corvo é Raven. Este era o apelido da família mais nobre e poderosa do reino de Lithian.

Adhemar, filho do rei Amon e da rainha Alessandra estava de braços esticados e com um ar entediado enquanto Ada, a escrava, tirava as medidas para preparar um fato. Ao lado, a mãe Alessandra observava.
- Por mil ézios, soubesse eu o trabalho que dá a união de duas pessoas que estaria muito bem quieto. – comentou Adhemar.
- Ora, meu filho. – respondeu a rainha - Imagina como estará Ísis.
- Sabe bem porque faço isto, minha mãe. Não magique na sua mente histórias de encantar. Estamos ambos bastante crescidos para isso.
A rainha sentou-se no sofá mais distante.
- Já que se faz, que se faça bem feito. Bem sabes como sou. E é a nossa honra que está em questão. Quero fazer algo único.
- Não devia estar a ter esta conversa com a minha futura esposa? Ela, sim, é bem capaz de fantasiar com essas coisas. Eu só quero que me seja permitido acabar com esta posição de crucificado para poder ir caçar. Antes que a escuridão o impeça e seja mais um dia perdido.
- Tens razão num ponto. Devo ir ter com a minha futura nora, temo que as suas escolhas possam atrapalhar um pouco o que tenho na cabeça.
Adhemar sorriu.
- De certa forma, parece que é a minha mãe que vai casar.
A rainha retribuiu o sorriso e saiu da sala.
O rei Amon encontrava-se no trono, as mãos repousando sobre os braços da madeira luxuosa, e enquanto esperava pelo filho para ir caçar conversava com o seu braço-direito, Rómulo e a feiticeira Ofélia.
- Diz-me feiticeira. Como está o mar?
Ofélia aproximou-se do rei e ajoelhou-se.
- O mar está agitado, meu rei. Um ar extremamente salgado que indica tempestade.
- Tão perto do casamento do meu filho? Quem se atreveria? Quem na sua perfeita consciência providenciaria um ataque ao meu império neste momento?
O rei levantou-se, furioso.
- É bom que o Duque de Castella não pense em tal disparate! Pendurarei a sua cabeça decapitada junto à minha colecção de javalis!
Rómulo fez sinal ao rei para se acalmar.
- Meu bom rei, nada tema. Sabe perfeitamente que possui uma armada invencível. Bravos guerreiros que o respeitam. Que darão a vida por si!
- E nada mais fazem que a sua obrigação! Casos não queiram ser comida para leões!
Adhemar surgiu na sala.
- Pronto para a caça, meu pai?
O rei anuiu e abandonou o trono saindo da sala com o filho.
Ofélia, a bruxa, sorriu para Rómulo.
- Tem cuidado com a tempestade que estás prestes a enfrentar. Há um grande risco de naufrágio. Trair o capitão não é muito inteligente.
Rómulo olhou para ela com frieza.
- O dia em que te atirar à fogueira será o dia mais feliz da minha vida.
 

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