Já estavam cansados de percorrer a escuridão dos bosques quando a súbita percepção de um cheiro fétido denunciou a presença do que há muito procuravam. Estavam já relativamente longe do local onde haviam sepultado os mortos do inimigo e começavam a pensar em desistir da sua busca, mas, guiados pelo fedor que, a cada passo, se tornava mais forte, não demoraram muito a descobrir, percorrido por alguns corvos que dele se alimentavam, o ainda reconhecível cadáver de Gälart.
- Está aqui. – declarou Mordechai, forçando-se a conter um esgar de asco – Não precisamos de prosseguir mais.
- E agora? – perguntou um dos soldados – O que fazemos com ele?
- O mesmo que com os outros. – replicou Mordechai, terminante, apesar de se sentir tão relutante em aproximar-se daquele destroço como qualquer um dos seus companheiros – Não o podemos deixar aqui para ser encontrado.
Amara chegou à praça central de Varin a tempo de ver dois dos seus homens, em tempos escondidos em Lithian, descer de uma das carruagens, trazendo consigo uma figura cuidadosamente manietada, com o rosto totalmente encoberto por um capuz negro. Nesse momento, também, o seu olhar encontrou, descendo da outra carruagem a figura de que há muito esperava notícias, agora também vestido com o negro dos condenados, mas fitando-a com um sorriso triunfante.
- Soran… - murmurou Amara, permitindo-se um sorriso leve.
- Boas noites, minha senhora. – cumprimentou o lorde, curvando-se numa vénia formal. Depois, aproximou-se dela e, com ternura, beijou-a numa das faces.
Os braços dela enroscaram-se no corpo dele.
- Boas noites, meu belo lorde. – respondeu Amara, apertando o corpo dele contra o seu – Meu querido…
Relutante, mas consciente do olhar dos seus fixo em si, Amara libertou-o dos seus braços. Em seguida, com um gesto leve, apontou para o prisioneiro.
- É quem eu penso?
Soran sorriu.
- Ele mesmo.
O rosto de Amara tornou-se gélido.
- Imagino que a tua viagem te tenha fatigado, - disse, compreensiva – mas entenderás que quero tratar desta situação agora mesmo. Se te quiseres retirar, tens a minha permissão.
- Sensibiliza-me a tua preocupação, Amara. – replicou Soran – Mas deves compreender que não perderia isto por nada no mundo.
- Já o imaginava. – replicou ela, com um sorriso. Depois, avançou na direcção do prisioneiro e, indicando, com um gesto, que o deixassem tombar no chão, fitou, apreciativamente, a figura trémula.
- Pergunto-me se sabes – disse, caminhando em redor do prisioneiro – que todos os crimes têm um castigo, ainda que, durante tanto tempo, te tenhas julgado infalível. Pergunto-me se sabes que chegou a hora da expiação.
Um soluço brotou da garganta do prisioneiro, enquanto Amara se baixava, forçando-o a ajoelhar. Depois, lentamente, removeu-lhe o capuz, erguendo-se, depois, altiva, diante dos olhos ainda aturdidos do homem.
- Pergunto-me – disse ela, com um sorriso de gelo – se ainda me reconheces.
Durante alguns momentos, os olhos de Caledon não viram nada, aturdidos pela súbita passagem da escuridão à bruxuleante luz das tochas. Depois, a sua visão encontrou, pálido e espectral, o rosto da sua executora, um rosto que ele próprio expulsara do seu mundo, carregada com o peso das suas mentiras e destinada a morrer na solidão do exílio.
- Calana… - murmurou, incrédulo – Não… Não pode ser… Tu não sobreviverias…
Os lábios da mulher contraíram-se de ira. Lentamente, Amara desembainhou a sua espada, deixando que a lâmina brilhasse sob a luz das chamas ondulantes, como um prenúncio de morte. Uma morte ainda distante, precedida pelos fúnebres vultos do medo e da dor.
- Eu sobrevivi, Caledon. – respondeu ela, aproximando-se, lentamente – Tu não o farás.
A espada desceu, lentamente, como num baile sádico. Como um beijo suave, a lâmina pousou no peito ofegante do antigo lorde, fazendo com que um gemido de pavor brotasse dos seus lábios.
- Por favor… - implorou ele – Por favor, não…
- Nem penses – interrompeu Amara – em implorar por misericórdia. Não quando tu próprio não a tiveste, depois de seres tu o culpado da morte da nossa mãe e de me teres condenado pelos teus crimes. Tu vais morrer, não tenhas a menor dúvida. Mas não vai ser assim tão fácil.
A espada retornou à sua bainha. Depois, silenciosamente, Amara baixou-se, até o seu olhar se encontrar à altura do de Caledon, e, com um sorriso gélido, ela prosseguiu:
- Durante dias e dias, no futuro por vir, tu serás o meu jogo.
Uma violenta bofetada aturdiu o prisioneiro, ainda pendente das palavras da que era, agora, a senhora da sua vida.
- A cada hora, – dizia ela – a cada instante em que a vontade me ditar, eu irei por ti. Tu, que estarás fraco e indefeso, à minha espera, na mais escura das celas do meu pequeno território. Perante mim, serás apenas um objecto e, sempre que te procurar, saberás que é a agonia quem te busca, porque a dor será a única coisa que encontrarás em mim. E isto eu te garanto… Quando eu me cansar de ti e decretar, enfim, a tua execução, há muito que me terás implorado pela morte.
Desta vez, um pequeno punhal surgiu na sua mão e, com um sorriso cruel nos lábios, Amara rasgou a veste do prisioneiro, expondo a alva pele do seu peito.
- Calana… - balbuciou Caledon, consumido por um pavor que não podia já controlar – Por favor, Calana… Eu sou o teu irmão!
A lâmina rasgou um longo corte no seu peito, arrancando-lhe um violento grito.
- Não me devias ter lembrado disso. – respondeu Amara. Depois, o punhal voltou a cortar.
domingo, 19 de abril de 2009
Capítulo V (Parte VI)
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