sábado, 21 de fevereiro de 2009

Capítulo IV (Parte II)

Divagava com o olhar por todas as sombras do espaço, como se detrás de uma coluna ou escondidos numa esquina, pudesse haver uns olhos que o espiassem. Sentia com toda a força a tensão que se instalara no palácio real e, ainda que tivesse tratado de eliminar todas as provas que o podiam indiciar, não deixava de notar que a rainha lhe dirigia demasiada atenção. Fora um alívio para si ver que Durun morrera com os seus segredos, mas isso não significava que estivesse salvo. E que razões poderiam explicar a obsessão de Alessandra pela sua pessoa, mandando-o chamar a qualquer hora, com a escusa de supervisionar as investigações no respeitante à morte do seu marido e ao desaparecimento do seu filho?
Inconscientemente, Lothian apressou o passo. Parecia que os corredores do palácio se haviam alongado interminavelmente e que horas haviam já decorrido desde que deixara os seus aposentos em direcção à torre dos mensageiros. Escondido entre as vestes, levava a derradeira prova da sua cumplicidade na conspiração e tudo o que desejava era livrar-se dela o mais rápido possível. A partir daí, que Amara decidisse o que queria fazer. Sabia, contudo, que caso fosse encontrado com aquele documento em sua posse, seria desmascarado e, sem dúvida alguma, submetido ao mesmo hediondo destino que Durun.
- Boas noites, conselheiro. – cumprimentou uma voz atrás de si, levando a que o seu corpo se retesasse de pavor. Ao voltar-se para fitar o rosto do seu interlocutor, contudo, o seu nervosismo transformou-se numa máscara de arrogância, ao ver que se tratava de um simples soldado, um de entre os muitos que patrulhavam o palácio.
- Boas noites, soldado. – respondeu – Precisas de algo?
- Não, senhor. – replicou o soldado – Pretendia apenas certificar-me de que era o conselheiro e não um estranho.
- Fizeste bem. – observou Lothian – Nesse caso, prosseguirei o meu caminho.
O soldado assentiu e, cumprimentando-o com um rígido gesto militar, seguiu com a sua ronda.
Poucos passos depois, contudo, ao alcançar, enfim, a escadaria da torre, a gélida máscara do conselheiro quebrava-se sob o temor que ocultava e um leve suspiro saiu dos seus lábios, expressão do alívio que subitamente o invadira.
- Ainda vais ser a minha morte, - murmurou – Amara Morningstar.

Quando o corvo chegou ao seu destino, Amara fitava as estrelas, buscando no manto dos céus a serenidade que não conseguia encontrar no seu coração. Mirian não conseguira ver com exactidão o que ocorrera em Lithian. Era demasiado jovem para controlar o seu poder de forma eficiente. Dissera-lhe, contudo, mais que o suficiente para que os seus pensamentos explodissem numa tempestade de nervosismo. Haviam falhado. Quantos teriam morrido, pois? Quantos voltariam para si? E Soran? Estaria ele…?
O som do crocitar do mensageiro, momentos antes de pousar no seu ombro, despertou-a das suas divagações. Lentamente, estendeu a mão para a ave, removendo-lhe da pata o pequeno embrulho que escondia a mensagem. Depois, enquanto o corvo voltava aos céus de onde viera, Amara fixou o seu olhar na letra do conselheiro Lothian e lágrimas de dor e de alívio inundaram os seus olhos.
Sabia agora o essencial do que sucedera, ainda que muito tivesse ficado por explicar, e ainda que o derradeiro resultado tivesse sido uma derrota, as consequências não haviam sido tão graves como as que a sua mente imaginara. Segundo a informação que tinha diante de si, Amon Raven, fora morto por uma flecha desconhecida, e não por um dos seus, mas, ainda assim, morrera. O caos que se instalara, contudo, impedira que os seus agentes cumprissem com a sua missão. Sabia que Durun fora capturado e torturado até à morte, mas que nada dissera, e, ainda que sentisse alguma suspeita quanto à sua pessoa, Lothian mantinha o seu posto na corte. De Avalen e Delenia, nada sabia, excepto que vira esta última, pela última vez, perigosamente próxima do príncipe Adhemar, que também desaparecera sem deixar rasto. Quanto a Soran Fadenbran, vira-o desaparecer entre a multidão na companhia de Caledon Westraven que, desde esse momento, não voltara a ser vislumbrado.
Um leve sorriso ganhou vida nos lábios de Amara. O rei estava morto e Adhemar e Caledon desaparecidos. Dos seus, apenas um morrera, e, ainda que lamentasse genuinamente essa morte, era, sem dúvida, um resultado um pouco melhor que o que esperara após a visão de Mirian. Delenia e Avalen… Seguramente voltariam para Varin, caso estivessem bem, e Soran… Não deixaria de voltar para os seus braços. Previa até que o lorde tivesse sido o único a cumprir a sua missão com sucesso. Talvez em breve tivesse o seu odiado irmão à sua mercê. Mas uma pergunta continuava a perturbar o seu pensamento. O que teria acontecido a Adhemar?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Capitulo IV - Parte I

- Mamã…mamã… - uma petiz de aparentes quatro anos suplicava para que a sua mãe a resgatasse das mãos do cruel homem que a levava. A mulher não mostrava um pingo de comoção, a sua expressão facial era fria e inalterável. Aquele momento era a solução perfeita.
- Mamã…não quero ir…Mamã…- repetia a criança.
- Está aí o saco de moedas de ouro como o combinado. – disse o homem – Por ela – apontou para a criança – e pelo esquecimento deste dia. É o melhor para todos. É, sem dúvida, o melhor para ti.
A expressão de gelo da mulher foi interrompida por um breve sorriso.
- Não… Não cometas esse erro. Não me ameaces. Que julgas tu possuir? Quem tens para te proteger? És um simples peão. Um insignificante peão. – a mulher pegou um monte de areia e soprou – Vês? Livrar-me de ti seria tão simples como isto.
- Até as filhas do demónio têm os seus pontos fracos. Aparece para atrapalhar a minha vida e verás do que sou capaz!
- O negócio está fechado. Não costumo desfazer tratos.
O homem seguiu o seu caminho com a criança enquanto a mulher ficou estática, indiferente aos constantes gritos da criança. Assim que os dois desapareceram do alcance da sua visão agarrou com força o saco de moedas e sorriu.
A sua alegria, contudo, foi interrompida pela escuridão que subitamente invadiu o céu. O dia fez-se noite e um corvo pousou no seu ombro direito, esticou-se e, com o seu bico, roubou o saco e deitou-o ao chão. A mulher ajoelhou-se para recuperar o saco, mas parou incrédula ao deparar-se com ossos que substituíam, agora, as moedas de ouro. Ao longe avistou uma sombra. Foram precisos longos minutos para finalmente reconhecer quem se encaminhava lentamente na sua direcção. A sua filha….a criança de quatro anos…caminhava ensanguentada, os seus olhos vidrados, as suas mãos esticadas como procurando ajuda em desespero.
- Mamã…mamã... – repetia cada vez mais próxima - Ajuda-me que vou morrer…
A mulher levantou-se e deu dois passos para a frente ficando mesmo ao lado da filha, sem soltar uma lágrima. Queria somente descobrir o que tinha acontecido.
- Mamã… - a criança ajoelhou-se perante a mulher – Só tu me podes ajudar.
A petiz cuspiu sangue e caiu inerte aos pés da mãe.
Ofélia acordou. O seu corpo estava quente. Confusa, olhou em redor, tentando entender aquele sonho e o porquê de surgir agora.

- Está a anoitecer! – exclamou o príncipe, preocupado – Temos de arranjar um lugar para ficar.
- Mais uma hora e chegamos ao nosso destino. – respondeu Delenia – Não vou pernoitar por tão pouco.
- Daqui a meia hora vai ficar tão escuro que nem os nossos corpos reconheceremos. É melhor passarmos aqui a noite. Em segurança.
- E passaremos em segurança. No nosso destino. Para que quer passar aqui a noite, príncipe? Eu não sou nenhuma mulherzinha da cidade fácil de enganar e com um fascínio inexplicável pela sua presença.
O príncipe sorriu. “Que mulher teimosa”.

- Onde vai, princesa? – questionou Rómulo.
- Aproveitar a noite para resolver um problema pendente – respondeu Elara – Uma espinha encravada.
- Não percebo. Acha que a sua ausência não será notada? Bem sei que a morte de seu pai não lhe cobra lágrimas mas fingir era um mínimo precioso.
- Neste momento a minha mãe continua ocupada com as suas grotescas torturas e o meu irmão está desaparecido. O funeral de meu pai será amanhã e estarei cá bem a tempo. Vou aproveitar a noite para ir à caverna de Luath.
- Matar a bruxa? – perguntou Rómulo sorrindo – E não quer a minha companhia? Seria a cereja em cima do bolo.
- Não, ainda não.
- Então? Que negócios tem com ela?
- A bruxa sabia o que ia acontecer. Quero saber porque ela não me alertou para intrusos. Quero saber quem levou o meu irmão.
- Está a pensar salvá-lo?
- Pelo contrário. Quero garantir que morre. – respondeu Elara – Além disso, quero saber que intenções têm esses intrusos e se me poderão atrapalhar no meu assalto ao trono.
- Não percebo o porquê de continuar a poupar a vida a essa inútil…
- Eu não preciso de ti para pensar – a princesa montou no seu cavalo – Limita-te a fazer o que eu mando se ainda sonhas com algo mais do que és. Se alguém questionar a minha ausência, tenta inventar uma desculpa credível.
- Como desejar, princesa.
Elara seguiu em direcção à caverna.

As parcas luzes provocadas por fogueiras irrompiam a escuridão, Delenia sorriu.
- Chegamos . – disse falando mais para ela própria do que para o príncipe.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Capítulo III (Parte VI)

Nenhum outro sítio em todo o reino de Lithian fora, em toda a sua história, designado com o nome de um dos seus habitantes. Homem algum fora considerado digno de tal graça e, como tal, não havia em todo o espaço um único ser que se pudesse orgulhar de ter sequer o mais ínfimo território abrigado sob a sua designação. Nenhum excepto Doren Azthar.
Praticamente desde o início da dinastia Raven que os filhos proscritos de Azthar, desertor do reino vizinho, haviam vivido na sombra da família reinante. Eram suas as mãos que mexiam no trabalho mais imundo e que, sem hesitar, cumpriam com os destinos que nenhum outro homem conseguiria determinar sem medo de voltar a ser visto perante a luz do dia.
Fora, pois, esse o nome que para sempre se gravara a sangue nas mais negras memórias de Lithian e, por isso, o mais negro e imundo lugar do reino, aquele onde o medo e a agonia reinavam sobre tudo o mais, tomara para si o nome daqueles que seriam, até ao fim da tirania Raven, os carrascos dos soberanos.
Dizia-se que o ambiente da câmara de Azthar era capaz de gelar os nervos do mais corajoso dos homens e que, se a penumbra tenebrosa da câmara, aliada aos estranhos instrumentos do carrasco, era já a visão de um inferno iminente, era contudo a crueldade espelhada no olhar de Doren o primeiro de todos os suplícios.
Naquele dia, um sádico sorriso parecia pairar nos lábios do carrasco que, segurando nas mãos uma fina lâmina, parecia esperar, pacientemente, a sua vítima. Contrariamente a outros que, em tempos, haviam exercido a sua função, um descendente de Azthar jamais ocultaria o rosto e, como tal, a sua face pálida e esquelética parecia ser, perante os condenados, como um prelúdio à contemplação da morte.
E então Alessandra entrou, um lampejo de cumplicidade brilhando no seu olhar. Por algum motivo fora a rainha a protectora daquele homem odiado. Havia, na verdade, uma secreta razão que levava a tímida e submissa rainha a acompanhar com tanto empenho os interrogatórios da justiça real, fitando serenamente o seu secreto protegido enquanto o seu corpo reagia aos gritos dos supliciados. Atrás de si, dois dos guardas arrastavam o corpo da sua nova vítima, já despojado das suas vestes, e pronto a sofrer em nome do prazer e da verdade. Por último, como se encerrasse uma espécie de cortejo fúnebre, também a perturbada figura do conselheiro Lothian entrou na sala.
Silenciosamente, Doren sorriu, enquanto observava a sua sádica rainha tomar o seu lugar no modesto trono, no centro de uma das paredes da câmara. Como a uma deusa sinistra, viu-a ordenar aos guardas que lhe apresentassem o seu prisioneiro, enquanto, com um leve aceno, indicava a Lothian que se aproximasse.
- Compreenderá, certamente, – disse ela – porque vos trouxe comigo, conselheiro Lothian. É, evidentemente, o seu dever assistir-me na busca do responsável pela morte do meu marido.
- Evidentemente, majestade. – concordou o conselheiro, ocultando sob o gesto de uma breve referência, o verdadeiro pavor que lhe consumia os sentidos. O que faria se o prisioneiro soubesse da sua intervenção na conjura? Que poderia fazer caso o homem pronunciasse o seu nome?
- Azthar. – prosseguiu a rainha, dirigindo-se ao carrasco – Trago-te um assassino. É possível que o negue com todas as suas forças, mas eu sei que é culpado. Espero que mo proves.
Doren respondeu com uma vénia.
- Muito bem. – concluiu Alessandra – Podes começar.

Parecia que, finalmente, a confusão de Vareil ia ficar para trás e, à medida que Fadenbran o conduzia por entre as ruas mais decrépitas, que eram também as mais desertas da capital, Caledon começava a acreditar que conseguiriam escapar em segurança ao caos provocado pelo assassínio do rei.
Quando, contudo, a penumbra começava a invadir os céus e a floresta circundante começava já a ser visível, a sua caminhada foi bruscamente interrompida por uma visão invulgar. Diante dos seus olhos perturbados, três carruagens pareciam ser cuidadosamente posicionadas, ainda com os seus animais atrelados, de modo a estarem prontas a partir, mas, ainda assim, obstruindo por completo o caminho em frente. Não parecia, ainda assim, haver ninguém por perto.
- Recue, Westraven… - murmurou Fadenbran, em tom de urgência – Tenho um mau pressentimento sobre isto…
Atemorizado, Caledon preparava-se para obedecer quando, subitamente, o ar foi invadido pelos ruídos de um numeroso grupo de homens que, saindo das sombras atrás de si, começaram a avançar na sua direcção.
- O que é isto, Fadenbran? – perguntou, forçando a voz a não vacilar.
- Não faço a menor ideia… - respondeu este, reflectindo também o medo na sua expressão – Tente fugir. – sugeriu – Vou tentar mantê-los ocupados.
Antes que Caledon tivesse oportunidade de responder, já o lorde se lançava em direcção às carruagens, como se planeasse fugir. Contrariamente, contudo, ao que parecia ser o seu plano, apenas dois dos seus atacantes investiram na sua direcção, lançando-se os restantes em direcção a Westraven, que, paralisado pelo medo, mal se debateu antes de ser completamente imobilizado.
Por um momento, ainda tentou vislumbrar o que se passava, mas sem sucesso, pois, escassos segundos depois, um grosso capuz negro era enfiado pela sua cabeça, tapando-lhe a visão, ao mesmo tempo que outras mãos o agarravam e amarravam. Antes, contudo, de se sentir arrastado para longe e descuidadamente lançado para o interior do que calculou ser uma das carruagens, não pôde deixar de ouvir a voz de Fadenbran, modificada num grito que lhe gelou o sangue:
- Não!

Várias horas haviam decorrido, mas, na câmara de Azthar, nenhum dos presentes estava mais próximo da verdade que anteriormente.
Era verdade, de facto, que Durun tentara mostrar-se um cobarde perante a rainha, na esperança de conquistar para si próprio o direito de uma morte rápida, ao invés do sofrimento. Sabia-se capaz de resistir a muito, mas não podia ter a certeza de controlar os seus segredos perante um limite demasiado extenso de dor e, por isso, tentara encontrar na cobardia o refúgio da única fuga que lhe seria permitida.
Perante a dor, contudo, a sua alma revelara-se mais forte do que ele próprio alguma vez a julgara. Diante dos olhos de Alessandra que, inconscientemente, reflectia em cada sorriso e em cada gesto, o mais profundo desejo da crueldade absoluta, Doren Azthar brincara com o seu corpo através dos mais temíveis e dolorosos instrumentos, mas os lábios da sua vítima não se haviam separado senão para dar passagem aos gritos.
E, agora, enquanto via os olhos do prisioneiro, desesperado, suplicante, mas inflexível no seu silêncio enquanto fitava alternadamente o sádico sorriso da rainha e a tensa expressão do conselheiro, Alessandra estava, finalmente, satisfeita. Tinha um culpado para dar a si própria e as suas ânsias não lhe pediam mais dor. Para que precisava de continuar a insistir nas provas?
- Ele não falará. – declarou, levantando-se bruscamente, enquanto, de forma discreta, trocava com o carrasco um leve olhar de aprovação – Termina com o seu sofrimento. Conselheiro… - acrescentou – Ficará para se certificar da execução, presumo…
Lothian assentiu, sentindo a tensão do seu corpo abrandar enquanto a figura da soberana se afastava do trono, para, em seguida, abandonar a câmara. Então, o seu olhar desviou-se para o corpo mutilado e ensanguentado de Durun, a tempo de encontrar nos seus olhos a acusação do fracasso, a mesma imagem que, para sempre ficaria aprisionada na sua memória, imobilizada no estertor da morte que, pela mão do carrasco, descia sobre o peito do condenado.

Durante alguns momentos, os gritos de Caledon continuaram a ouvir-se, apesar de abafados pelo tecido, enquanto, no interior da carruagem, alguns dos seus captores tratavam de o imobilizar devidamente, para depois o silenciar com uma mordaça.
Alguns instantes depois, contudo, enquanto o silêncio se estabelecia, os dois homens saíram da carruagem, aproximando-se com reverência da figura que, tendo retomado a sua máscara de serenidade, os fitava tranquilamente, de braços cruzados sobre o veludo das suas vestes negras.
- Cumprimos a nossa parte, Lorde Fadenbran. – declarou um deles – Para onde devemos seguir?
- Para a terra dos exilados, Johan. – respondeu Soran, com um sorriso leve, enquanto os seus olhos se fixavam na carruagem – Aí, onde a lua de Varin brilha com a magia dos puros, a senhora dos condenados receberá o nosso tributo e aceitará a nossa fidelidade.
- Muito bem, senhor. – assentiu o homem – Que seja para Varin.
 

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