segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Capítulo VII (Parte IV)

Entrou no palácio de Agaloth como a nobre que era, altiva e serena na sua etérea distância. Perante os que a contemplavam, ela não era simplesmente a senhora dos condenados, era Calana Westraven, nobre das linhagens superiores, possível pretendente ao trono de Lithian. E foi como tal que foi recebida. Aiden Thornblack enviara servos e cortesãos para a receber com a devida glória, enquanto se preparava para conhecer a senhora que Mordechai Gray descrevera como a luz de Lithian.
Quando as portas se abriram para permitir a entrada de Amara na sala do trono, havia um sorriso nos seus lábios e uma elegância quase soberana nos seus gestos. Tinha a postura das deusas e das rainhas e, ainda que habitasse num dos mais esquecidos povos de Agaloth, havia sido reconhecida como senhora perante os olhos dos banidos e dos fugitivos de Lithian. Aceitavam as suas ordens e serviam-na com devoção. E tanto ela como o próprio senhor de Agaloth sabiam que, ainda que parte dessa fidelidade se devesse aos tiranos irresponsáveis que governavam o seu território natal, parte devia-se à nobreza e graça majestáticas de Calana.
- Sede bem-vinda, senhora. – saudou-a o rei, erguendo-se do seu trono para a receber. Calana, por sua vez, avançou alguns passos, curvando-se diante de Aiden numa vénia profunda, tão graciosa como impassível na sua soberba.
- Majestade… - cumprimentou.
- O vosso mensageiro – declarou o rei – disse-me que tendes assuntos a discutir comigo. Como devereis imaginar, há muito sei que Varin se transformou no refúgio dos vossos, mas também sabeis que não tenho qualquer simpatia pelos Raven, pelo que a vossa presença no meu reino não me perturba de todo. Mas vindes até mim, e algo me diz que precisais de mais que a minha indiferença.
Amara assentiu.
- Assim é. – concordou, passando depois a explicar ao rei de quem esperava passar a depender o que sucedera com a sua missão em Vareil.
- Evidentemente fracassámos. – concluiu – Mas a verdade é que tenho um elemento poderoso nas minhas mãos e, caso estejais disposto, na vossa benevolência, a ajudar-nos, tereis também o devido benefício.
- Deveras? – perguntou Aiden – E que benefício é esse?
- Da nossa conspiração em Lithian – explicou Amara – ficámos com alguns prisioneiros. Um deles é o meu irmão Caledon. Sabereis certamente dos motivos do meu exílio e compreendereis o meu desejo de vingança. Pretendo executá-lo com as minhas próprias mãos, mas desejaria fazê-lo dentro das normas, e essas não mo permitem a não ser que reconheçais a minha autoridade em Varin.
Aiden sorriu.
- Quereis ser senhora de uma pequena vila? – observou – Não são muitas as vossas ambições.
- Quero ser senhora de Lithian. – replicou Amara – Mas uma coisa de cada vez. Para o conseguir, precisaria do vosso apoio. Sem ele, eu e os meus somos somente um grupo de exilados contra o peso de um reino.
- Verdade. – concordou o rei – Varin é vossa, independentemente do que eu diga. Quase nenhum dos seus habitantes pertence a Agaloth, não é verdade? Posso oferecer-vos os direitos sobre aquele território. Sois uma nobre e confesso que me agrada a perspectiva de saber Caledon morto. Afinal, ele seria um obstáculo na vossa pretensão ao trono…
- Saberei saldar as minhas dívidas para convosco, majestade, – prometeu Amara – se for bem sucedida nos meus intentos. A morte de Caledon será apenas um capricho pessoal, uma vingança… dolorosa, se possível, que acontecer servir os meus objectivos. Mas tenho mais que isso para os oferecer. O outro prisioneiro é Adhemar Raven.
O rosto do rei moldou-se numa máscara de espanto.
- Tendes um Raven na vossa posse? – exclamou, incrédulo – Não me surpreende que preciseis da minha protecção. Não haverá um soldado em Lithian que não tenha sido enviado em vossa busca.
Amara sorriu.
- Felizmente, - disse – até ao momento os sobreviventes não sabem da nossa existência. Mais cedo ou mais tarde, contudo, vão descobrir. Nesse momento, precisaremos de uma força que nos apoie, ou estaremos condenados.
- O príncipe herdeiro dos Raven… - murmurou Aiden, pensativo – Trata-se de um trunfo valioso. Mas tende-lo em Varin? Não é pouco seguro?
- Assim é. – assentiu Amara – Mas são os meios de que disponho.
- Já não, senhora. Se vos vou fazer governante de um território de Agaloth, então tereis à vossa disposição todos os meios que o reino achar por bem ceder-vos. Tendes a protecção do exército real e o acesso aos edifícios do reino. Inclusive o forte de Varin.
Amara fitou Aiden, incrédula. O forte abandonado, fechado desde que o território perdera a maioria dos seus habitantes para cidades melhor estabelecidas, era um dos edifícios mais seguros e protegidos de Agaloth.
- Sois muito generoso. – observou – O que desejareis de mim em troca?
- Lithian é uma ameaça para mim. – explicou o rei – Há muito que os Raven procuram uma desculpa para entrar em guerra com Agaloth, pois precisam de aliados para nos vencer. Quero que me apresenteis o motivo que eles precisam para partir contra nós. Quando executardes o vosso irmão… guardai um pouco de tempo e livrai-vos, perante o mundo, da vida de Adhemar Raven.

Soran entrou na cela de Caledon como quem visitasse um moribundo. O seu rosto, fechado e austero, parecia deixar antever um qualquer obscuro laivo de compaixão e havia na forma como olhava em seu redor algo de pesar. E, quando os seus olhos encontraram o corpo trémulo e encolhido do cativo, o seu rosto pareceu cobrir-se de tristeza.
- Caledon. – chamou, atirando-lhe as roupas que recuperara – Veste-te, antes que morras de frio.
Os olhos do prisioneiro ergueram-se para fitar o seu benfeitor. Ao reconhecer o seu captor, contudo, não pôde evitar retrair-se no seu minúsculo canto.
- Faz o que te digo. – insistiu Soran – Ou serás orgulhoso ao ponto de insistir num castigo desnecessário?
Trémulo e vacilante, Caledon obedeceu.
- Porquê? – perguntou, fitando o lorde com uma expressão surpresa.
Soran suspirou.
- Trouxe-te até aqui – respondeu – porque estou do lado de Amara no que toca ao teu julgamento. O que tu fizeste não tem perdão e não serei eu a censurar a tua irmã no dia em que ela se quiser livrar de ti. Mas isto… Parece-me demasiado, até para ti.
- Ela não me vai poupar a nada. – murmurou Caledon, mais para si que para o seu visitante – Odeia-me demasiado para isso. Vai manter-me no limiar da loucura, atormentar-me até ao limite do insuportável… e vai continuar a recusar-me a morte, por mais vezes que lha suplique.
- Sabes que lhe deste razões para isso. – observou Soran.
- Sei. – admitiu o prisioneiro – Claro que sei. Mas não o consigo suportar… Eu não…
Fadenbran, por favor… - pediu, prostrando-se aos pés do lorde – Ela não o fará, mas vós… Podeis libertar-me desse tormento. Tende piedade de mim e acabai com a minha vida. Sabeis como ela sabe que mereço a morte, mas isto… Isto ninguém merece!
Soran fitou-o, como se não soubesse o que fazer, ou o que dizer.
- Caledon… - respondeu – Sabem os deuses que, uma vez na vida, concordo contigo. Mas não posso fazê-lo… Simplesmente não posso trair a confiança de Amara. Não posso ser eu a recusar o seu direito sobre ti.
O que se seguiu perturbou a alma de Soran até aos seus confins mais secretos. Diante dos seus olhos, Caledon Westraven chorava convulsivamente, resignado ao seu destino, mas demasiado perdido no medo para poder controlar a sua expressão.
- Farei por ti o que puder. – disse, sentindo que o jogo de que, até ao momento, fizera parte se estava a tornar demasiado cruel – Mas a decisão final não me pertence.
Caledon não respondeu. Já não o via, perdido na estranha loucura de um homem atormentado, de alguém que esperava a morte e, sentindo-a tão perto, não a podia tocar. E enquanto Soran saía, deixando o prisioneiro perdido na sua angústia, havia uma voz na sua cabeça que não cessava de repetir:
- Não devias ter feito isto. Não deverias ter prolongado ainda mais a sua dor.

A voz de Delenia era como um sussurro na escuridão, chamando o seu nome por entre as vozes que o rodeavam. Poucos momentos antes ouvira gritos desesperados vindos do exterior e perguntava-se se lhe estaria reservado um mesmo destino de medo e de dor. Mas a mulher que o traíra e o trouxera até ali chamava o seu nome nas sombras e ele reconheceria aquela voz em qualquer lugar.
- O que queres de mim? – perguntou Adhemar, erguendo-se apressadamente.
Delenia entrou na cela, trazendo nas mãos uma vela acesa.
- Quero justificar-me. – respondeu, fitando o príncipe com uma expressão dolorosa – Não pretendia aproveitar-me da tua confiança para te capturar. Na verdade, se tivesse obedecido, neste momento estarias morto, mas… A verdade é que não consegui cumprir com o que me havia sido destinado.
Adhemar fitou-a, incrédulo.
- E porque mo dizes? – perguntou – Que te importa o que me acontece agora? Já não te pertence a decisão de vida ou morte, podes viver com a consciência tranquila.
Delenia tentou responder, mas as palavras não saíam. Temia o que o seu coração gritava dentro de si, temia que, caso lho dissesse, as consequências pudessem ser terríveis.
- Não foi para salvar a minha consciência. – admitiu, incapaz de controlar as emoções – A verdade é que… Sinto por ti o que nunca senti por ninguém. Não sais da minha memória desde que te vi naquele dia. Não consigo libertar-me de ti, e não é só porque me sinto culpada do que quer que te espere. É porque… Porque tenho sentimentos fortes por ti.
Adhemar riu, um riso sinistro, vazio de emoções, perdido no silêncio da sua prisão.
- Amas-me? – perguntou – Então porque permites que continue aqui? Porque não me libertas?
Delenia tentou responder, mas ele interrompeu-a.
- Não respondas. – disse – Eu sei que não o farás. Traíste-me, mas nunca o farias ao teu pequeno povo. Nunca… Porque eu sou só um e estou condenado, mas eles vingar-se-iam de ti até ao fim dos tempos. Ou talvez porque acreditas na pretensa nobreza dessa mulher a quem segues. É irrelevante. Mas não te atrevas a dizer que tens sentimentos por mim, quando nem sequer tens coragem para escolher o teu próprio caminho.
» Deixa-me. – pediu – Por favor, desaparece. Deixa-me aceitar o meu fim com a dignidade que ainda me resta.
Delenia assentiu. Depois, como uma estátua que de súbito ganhasse vida, deixou a cela, para se refugiar no seu pequeno espaço. Espaço que em breve deixaria para não voltar nunca mais.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Capitulo VII (Parte III)

A noite já ia longa quando Rómulo se deitou para tentar descansar algumas horas. Fechou os olhos mas abriu-os novamente de forma brusca. Tentou de novo, mas não conseguiu. Cada vez que tentava adormecer a imagem da mulher que acabava de assassinar multiplicava-se na sua mente, uma e outra vez, como milhões de imagens diferentes que se sobrepunham. Levantou-se, o seu corpo encharcado em suor. Andou nervosamente pelo quarto, tentando esquecer o que tinha acontecido, enquanto repetia para si próprio que era um assassino, que não era a primeira vez que matava alguém. Porquê aquele sentimento? Que soldado digno desse nome poderia sentir pena? Repetiu para si próprio com um ar de desprezo “pena”. Porque se sentia assim? Estaria a idade a amolecê-lo? Os seus pensamentos foram interrompidos quando bateram à porta.
- Quem é?
- Elara. Abre.
O soldado dirigiu-se à porta e abriu-a devagar.
- O que se passa princesa? Alguma urgência?
Elara mandou-o afastar-se, entrou no quarto e fechou a porta.
- Muitas vezes me serves como princesa que sou, hoje quero que me sirvas como mulher que sou – despia-se lentamente – Pois acima de tudo é isso que sou. Acima de qualquer cargo que tenha. Acima do estatuto com que nasci…sou mulher. E hoje desejo-te.
Rómulo abraçou-a com força. Elara sorriu.
- Bem sei o quanto me desejas.
Os lábios dos dois aproximaram-se.
- Apaga-me este fogo que tenho dentro de mim – suspirou Elara – Faz-me tua esta noite.
Rómulo tentou beijar a princesa, mas esta colocou o dedo indicador em cima de seus lábios.
- Calma, valente guerreiro. Tanta pressa…
- Quero-te! – exclamou o homem.
Elara sorriu e deu-lhe uma chapada.
- Quem és tu para me merecer? – afastou-se – Quem pensas que és? – sorriu – Pobre inútil.
Rómulo passou a mão pela face e aproximou-se da princesa, encostou-a com violência contra a parede e arrancou-lhe a pouca roupa que restava.
- Pois sabes que me desejas. Por isso vieste cá hoje. Por isso estás aqui esta noite. Provocas-me porque sabes que te quero. E sabes que me queres. Quantas noites passaste acordada a sonhar com isto?
- Deixa-me! – exclamou Elara – Deixa-me senão vais-te arrepender!
Rómulo beijou-a mesmo perante a sua recusa. Pouco a pouco, a princesa deixou de resistir e correspondeu a um beijo forte que lhe tirou o fôlego.
- Tu sabes que me desejas. – afirmou Rómulo – Tu sabes.
Elara recuperou do beijo e cuspiu na face do homem. Este sorriu e beijou-a novamente. Deitou-a na sua cama e possuiu-a com raiva, tal como dois animais no cio.


Arus Razza dormia com um sorriso estampado na cara quando o barulho de uns vidros a estilhaçarem o fez despertar. Foi a grande velocidade para a sala onde já se encontrava a sua filha. Seguiu o olhar assustado desta e deu com dezenas de corvos voando em círculo perto do tecto. Os vidros da sala estavam todos partidos e o barulho que os animais faziam era ensurdecedor. Subitamente os corvos começaram a alinhar-se desenhando uma palavra…”Viva”.

domingo, 25 de outubro de 2009

Capítulo VII (Parte II)

Naquela manhã, o povo de Varin acordou com um sorriso nos lábios e muitas expectativas no coração. Havia sido espalhada a notícia de que, naquele dia, Amara seria recebida pelo rei de Agaloth, e que, como a nobre que em tempos fora, a sua senhora negociaria com ele uma aliança. Eram, pois, muitos os que se haviam reunido em frente à casa de Amara, onde os que, entre os seus, haviam sido escolhidos para a acompanhar, não esperavam senão a sua senhora para partir na sua augusta missão.
Dos seus homens de confiança, Amara escolhera Mordechai para a acompanhar, não por predilecção, mas por utilidade. O antigo lorde tinha espírito de diplomata e prova disso fora a rapidez com que lhe conquistara aquela audiência. Não deixava, contudo, ninguém para segundo plano e, na sua ausência, seria Soran Fadenbran, o seu consorte, a tomar as decisões que se revelassem necessárias, com a sempre sábia ajuda de Andros, o seu velho mestre.
Ninguém estava preparado, contudo, para o que viram quando a porta da casa se abriu. Tanto os soldados que a acompanhariam, como as gentes do povo e até os nobres a fitaram, boquiabertos, quando Amara surgiu, bela e esplendorosa como a estrela da manhã. O majestoso vestido de veludo escarlate moldava-lhe as formas na perfeição e a sua pele pálida e sublime brilhava sob a luz do sol, contrastando com o brilho dos seus cabelos cuidadosamente penteados numa suave cascata. Descendente de reis, aquela não era apenas Amara Morningstar, senhora dos condenados. Aquela era Calana Westraven, e tinha o porte imperial da senhora que devia ser.
Por um momento, Amara fitou-os com solenidade, o seu rosto fechado uma máscara de altiva calma. Depois, um suave sorriso desenhou-se no seu rosto e todo o espaço pareceu ficar ainda mais luminoso.
- Independentemente do que vedes, - disse, percorrendo o seu povo com um olhar terno – eu continuo a ser uma de vós.
Uma imensidão de aplausos ergueu-se da multidão. As palavras da senhora aqueciam o coração das gentes, pois viam que, sob o luxo de que se cobrira para impressionar o rei das terras que ocupavam, Amara continuava a ser a mesma mulher que lutara e lutaria pelas suas vidas e pela sua liberdade.
- Nós sabemos. – replicou Andros, quando os aplausos silenciaram – Nunca duvidaremos de quem és,
Amara assentiu.
- Deverá ser curta a minha ausência, - prosseguiu – mas, para tudo o que for necessário, deixo a minha autoridade nas mãos do lorde Fadenbran.
- Por favor, Amara… - interrompeu este – Eu já não sou um lorde.
Amara estendeu-lhe a mão.
- Para mim és. – respondeu. Depois, lançando um último sorriso ao seu povo, prosseguiu:
- Devo partir. Mas antes, Soran, e se não te importares, poderias acompanhar-me à carruagem? Existem algumas indicações que gostaria de te transmitir sobre os nossos… convidados.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Os filhos de Raven - Cap.VII - Parte I

Rómulo caiu no chão sem aviso, cuspindo sangue pela boca e passou o braço pelos lábios para se limpar, olhando em seguida para a rainha. Nos olhos dela uma mistura de ódio e desprezo centravam-se no soldado.
- Inútil! Como pudeste falhar algo tão fácil? E acima de tudo que comandante cobarde és tu que abandonas quem te serve com receio da morte?
- Vossa majestade… - Rómulo levantou-se lentamente – Nada me satisfaria mais que a morte daquela mulher…mas não consegui…
- Perderás os teus caprichos, Rómulo. Deixarás de passear livremente pelo castelo. – afirmou a rainha – Deste momento em diante és apenas mais um simples soldado, nunca mais capitanearás nada! Nem um simples conjunto de moscas!
- Como vossa majestade ordenar. – resmungou o soldado virando costas – Como quiser.
- Pára! – A rainha gritou ao mesmo tempo que fazia sinal a dois soldados para o agarrarem. Aproximou-se do soldado e com a unha do dedo mindinho da sua mão direita rasgou um centímetro de pele na face de Rómulo. O sangue escorreu pela face adiante, acumulando-se no queixo, de onde seguia gota a gota para o chão do castelo.
- Miserável…que seja a última vez que me viras costas! – exclamou a rainha – Larguem-no.
Os dois soldados obedeceram e deixaram Rómulo, que olhava para o chão envergonhado.
- Olha para mim! – exigiu a rainha – Nunca desvies os olhos da rainha!
Rómulo obedeceu.
- Preciso que entregues alguém a Arus. Ele precisa de acreditar que a bruxa está morta para partir em busca do meu filho. Queima o corpo de forma a que não seja reconhecível. – explicou a rainha – Posso confiar em ti para esta missão ou também falharás? É que se falhares não há mais perdão! E não será só com a descida de posto que precisarás de preocupar-te!
- Não, minha rainha. – respondeu Rómulo – Em duas horas, um corpo queimado estará diante da porta de entrada do senhor Arus Razza.
- Esquece as promessas. Esquece as palavras. E age!
Rómulo saiu apressado da sala do trono nem dirigindo palavra a Elara quando se cruzou com ela em um corredor.

Isís encontrava-se no seu quarto, a andar nervosamente de um lado para o outro, quando o pai bateu à porta.
- Entre. – concedeu a jovem. – Pode entrar, meu pai.
Arus entrou e notou a agitação da filha.
- Tem calma, minha filha. – pediu o pai – Amanhã organizaremos uma busca para recuperar o teu noivo.
A filha sentou-se na cama sem dizer palavra. Arus saiu do quarto. Assim que o pai se afastou, Isís soltou um pouco audível “Idiota”.

Elara estava no seu quarto olhando para o retrato do seu trisavô. No meio da confusão com os arqueiros o medalhão de Azhar tinha desaparecido. Nunca pensara ficar sem aquele objecto que tanto estimava. Nunca pensara que todos os seus planos pudessem estar a desabar.

Ruas próximas de Fortuna. Aqui era o sitio ideal para Rómulo encontrar o que pretendia. Por aqui paravam as mulheres que serviam as luxúrias dos homens, mulheres sem família, esquecidas por todos, que só serviam para o prazer, mulheres de que ninguém ia questionar o desaparecimento. Apenas tinha que procurar uma com semelhanças físicas com a bruxa, tamanho e peso. O resto não interessava, afinal o corpo estaria queimado. Tudo ficava resolvido, a rainha poderia contar com a ajuda de Arus, que provavelmente só descobriria do engodo quando voltasse da tentativa de resgate do príncipe.
Rómulo nunca tinha visto a rainha a agir de forma tão cruel, tão rígida e violenta. A morte do rei tinha de facto afectado a mulher, e o soldado sabia que caso não conseguisse levar o plano dela para a frente provavelmente seria entregue aos leões.
Uma mulher mal vestida de uns aparentes quarenta anos passeava-se pelas ruas oferecendo os seus préstimos. O soldado analisou a mulher, servia na perfeição para os seus intentos.
- Meu bom soldado que lutas pelo nosso bem, que lutas pelo bem do reino, não há nada que te possa fazer? Por poucas moedas de ouro posso fazer tudo.
Rómulo anuiu, sorrindo. Os dois foram para um canto longe da luz.
As mãos do soldado procuraram o peito da mulher. Beijou-a até que esta ficasse sem fôlego. Percorreu o seu corpo. Já fazia tanto tempo que não estava com uma mulher… Deixou-a tomar controlo, entregando-se ao prazer, e no auge de tudo possuiu-a. Tudo isto não demorou mais de cinco minutos. Depois, recompôs-se e, aproveitando que a mulher estava de costas, atingiu-a com uma pedra. A mulher caiu sem sentidos. Cobriu-a de tudo aquilo que mais facilmente se incendiaria e usando uma das tochas que iluminavam aquela rua, pegou-lhe fogo. Apesar da rua não ser muito frequentada, os poucos curiosos que se atreviam a tentar perceber o que se passava recuavam quando notavam a presença de Rómulo.

Como prometido à rainha, ainda nem duas horas tinham passado quando o corpo queimado foi entregue na casa de Arus Razza pelo próprio soldado.
- Nem sabes como a minha alma está alegre hoje. – sorriu Arus – Diz à rainha que amanhã de manhã partirei em busca do príncipe.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Capítulo VI (Parte VI)

Quando entrou na escura e fria divisão que, pelo seu desconforto, fora adaptada a cárcere de Caledon, Amara trazia nos lábios um sorriso de gelo. Os seus olhos eram cristais de repulsa, fixos na figura trémula e prostrada do seu irmão que, ao ver a sua chegara, se afastara para o canto mais distante.
- Bons dias, irmão. – saudou Amara, irónica.
O lorde não respondeu.
- Mas que tens? – prosseguiu ela, implacável – Porque te afastas, se ainda não te fiz nada? Será que te desagradam os teus novos aposentos?
- Precisas de perguntar? – murmurou ele, compreendendo que a mulher não se afastaria sem respostas – Olha à tua volta!
Amara sorriu, enquanto os seus olhos se demoravam pelo espaço. A humidade escorria pelas paredes e o chão vazio prometia tudo menos um sono tranquilo. A um canto, a imundície acumulava-se, ameaçando preencher o ar com o seu cheiro fétido. E ainda passara tão pouco tempo… Como seria o prosseguir dos dias naquele espaço insuportável?
- O que queres de mim? – perguntou Caledon, e o medo que o dominava parecia fazer com que o seu corpo se enroscasse ainda mais sobre si próprio – Vais manter-me aqui até que morra? Não terás tu qualquer misericórdia?
- Não. – interrompeu Amara, terminante – Não tenho misericórdia de criaturas como tu. Precisarás que te recorde o que me fizeste? Queres que o faça?
Caledon não respondeu.
- Bem me parecia. – prosseguiu a captora – Afinal sabes que cada memória que me fizeres remexer será um novo momento de dor para a tua patética existência. Levanta-te! – ordenou, de súbito.
O prisioneiro hesitou. Sabia que resistir seria inútil, mas o medo paralisava-lhe os movimentos.
- Quanto te dou uma ordem, espero que obedeças, criatura. – declarou Amara, pontapeando-o com violência. – Agora vais levantar-te. Ou o que acabas de sentir será uma suave carícia comparado ao que te reservo.
- Não, espera… - implorou Caledon, ofegante – Eu… Eu obedeço.
Amara assentiu, fitando, com um sorriso, as patéticas tentativas do homem de erguer o seu corpo débil. Por várias vezes, vacilou, dividido entre o medo das consequências e a sua própria fragilidade, mas finalmente conseguiu suster-se sobre as suas pernas.
- Sentes medo? – perguntou Amara, observando o tremor que agitava o corpo do irmão – É por isso que tremes? Tens medo de mim?
- Sim. – murmurou Caledon, hesitante.
- Deixa-me adivinhar… Tens vontade de me implorar pela tua integridade, não tens? Que te poupe, que não te magoe muito… Que te mate, talvez?
- Porque não? – respondeu ele – Não é isso que queres? Ver-me morto? É justo… Faz sentido! Porque esperas?
Amara soltou uma gargalhada cruel.
- Justo! – exclamou - Serás assim tão idiota que nem sequer compreendes? Tu arruinaste toda a minha existência. Assassinaste a pessoa que eu mais amava no mundo! Estarás à espera que te execute com toda essa facilidade?
- Quem é essa em que te transformaste, Calana? – perguntou Caledon.
- Amara Morningstar. - replicou ela – O espírito da dor. O coração do ódio. A espada da vingança. Aquela que tu criaste.
- Como queiras. – assentiu o prisioneiro, resignado – E então? O que vais fazer?
Amara sorriu.
- Despe-te. – ordenou.
- Como…? – perguntou Caledon, confuso.
- O que eu disse.
Sem alternativas, o prisioneiro obedeceu, lançando por terra as vestes imundas, que Amara recolheu.
- Dizem que as noites vão ficar frias nos próximos tempos. – declarou esta, com um sorriso gélido – Dorme bem!
Caledon arfou de horror.
- Vais matar-me de frio?
Amara riu.
- Isso querias tu. – respondeu – Voltarás a ver-me bem antes disso.

- Amara. – chamou Delenia, ao ver a líder abandonar a zona onde eram retidos os prisioneiros – Posso falar contigo por um momento?
Amara imobilizou-se.
- Sobre o príncipe, presumo… - observou, com um sorriso gélido.
Hesitante, Delenia assentiu.
- Amara, por favor, ouve-me. – começou, antes que perdesse a coragem para falar – Não vou interceder pela vida dele. Não me vou pôr entre ti e a tua vingança. Mas certamente entenderás que, para o trazer comigo, recorri a meios que me envergonham e que preciso de me redimir.
- Se bem me recordo, – respondeu a líder – se tivesses cumprido as tuas ordens não terias trazido ninguém contigo e não haveria nada que redimir. Porque o trouxeste com vida?
Delenia vacilou.
- Não sei… - admitiu, após um momento de silêncio – Não imaginas como gostava de o compreender, mas a verdade é que não sei.
- Então explica-me – prosseguiu Amara – o que queres de mim, se não é interceder pela vida do Raven.
- Queria vê-lo. – murmurou Delenia, embaraçada – Falar-lhe. Explicar-lhe que…
- Que não és uma traidora? Que a tua acção não faz parte do teu carácter, mas que tiveste de o fazer?
- Sim.
- Louca… - replicou Amara – De todos os homens no mundo, apaixonas-te pelo inimigo. Não negues! – ordenou, vendo que a mulher se preparava para o interromper – Que outro motivo terias para te justificares perante um prisioneiro?
Delenia não respondeu. O que Amara dizia era, afinal, a mais pura verdade.
- Podes vê-lo, - declarou esta, benevolente – se precisas assim tanto de o fazer. Mas se queres continuar deste lado do campo de batalha, é melhor que comeces a afastar as fragilidades do teu coração. O teu príncipe é uma peça do inimigo que deixaste nas minhas mãos e pretendo usá-la da forma que me for mais favorável. Independentemente do que possas dizer ou sentir.
- É verdade o que dizem de ti! – murmurou Delenia, surpresa – O teu coração é de gelo.
- De gelo? – repetiu Amara, rindo – Não, Delenia. O gelo derrete. O meu coração é de pedra, frio, duro e impenetrável. E é assim que continuará a ser, por isso, se não me queres como líder, é melhor que o digas já.
- Sabes que não te segui por acaso. – respondeu Delenia – Acredito na tua causa, na tua guerra. Vou estar do teu lado e não precisas de duvidar disso. Mas é assim tão inalcançável para ti aquilo que eu sinto? Qual é, afinal, a tua relação com o lorde, se não sentes nada?
- A minha relação com o Soran não é assunto desta conversa! – exclamou Amara, enraivecida.
Delenia estremeceu.
- Tens razão. – disse, retractando-se – Perdi a noção do meu lugar. Perdoa-me…
Para sua surpresa, Amara sorriu.
- É assim tão importante para ti, o príncipe? – perguntou, benevolente – Muito bem, podes vê-lo. Quando eu partir. Creio que, em breve, terei uma audiência com o rei de Agaloth, e, por isso, estarei afastada durante algumas horas.
» Esta é a minha prova de confiança, Delenia. Será na minha ausência que verás o Raven. E, para teu bem e o do teu estranho protegido, é melhor que não haja problemas. Prova-me que mereces a minha confiança… e eu saberei merecer a tua fidelidade.

Encontrava-se sozinha há poucos minutos quando o seu silêncio foi interrompido pela chegada de Mordechai que, com um sorriso conspirador, a cumprimentou com uma vénia digna de qualquer corte nobre.
- Bem-vindo sejas, meu amigo – saudou-o Amara – Como correu a viagem?
- Esplendidamente. – respondeu ele – Sua Majestade, Doren Redscar, rei de Agaloth, aceitou o teu pedido de audiência, minha senhora.
- Óptimo. – replicou Amara, sorrindo – Gostava de ter visto a cara dele ao ouvir o meu nome de nascimento.
- Completamente surpresa, claro. – esclareceu ele – Mas diria que vais ter uma noite longa.
- Espera! – exclamou Amara – Será possível que… Para quando me conseguiste essa audiência?
- Para amanhã mesmo, senhora Westraven.
- Mordechai, és um diplomata de excelência. Não esperava que me conseguisses tanto.
Mordechai sorriu.
- Se a ordem é tua, - disse – nunca farei menos que o melhor.
- Agradeço-te, meu querido. Graças a ti, uma senhora partirá amanhã de Varin, para ser recebida pelo rei. Mas creio que uma escolta adequada não me faria mal… - acrescentou, pensativa.
- Não te preocupes com isso. – tranquilizou-a Mordechai – Providenciarei para que tenhas uma escolta digna de uma rainha.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Capitulo VI - Parte V

A rainha não precisou de muito tempo para tomar uma decisão. Rómulo foi nomeado o chefe da missão e escolhou cinco homens da sua confiança, ajoelhou-se perante a rainha e prometeu que ainda durante aquela tarde traria a cabeça da bruxa. Alessandra olhou para Arus Razza com um sorriso triunfante.

- Pois vês, a minha promessa será cumprida. - fez sinal a Rómulo para se levantar - Ainda hoje poderás pendurar a cabeça daquela odiosa criatura na tua sala e tomar chá olhando para os seus olhos mergulhados em sangue!
- Assim o espero - respondeu Arus retribuindo o sorriso - Que tudo farei para que amanhã tenhas o teu filho de volta.
- Não há tempo a perder. - afirmou a rainha, olhando para Rómulo - Sigam para a caverna de Luath imediatamente.
- Com todo o prazer - anuiu Rómulo com toda a satisfação - Vamos!
Os seis soldados encaminharam-se para a caverna perante o olhar da rainha e de Arus.

Na caverna de Luath enquanto Ofélia aquecia as suas mãos em uma pequena fogueira um dos seus corvos andava à sua volta crocitando sem parar.
Ofélia colocou as suas mãos no meio do fogo, manteve-as alguns segundos e depois retirou-as. Nem um sinal de queimadura. De seguida olhou para o corvo acenando com a cabeça afirmativamente.

- Como? Porque razão confia em Arus Razza, minha mãe? - questionou Elara depois de saber do acordo - Que prova de confiança tem?
- Arus só tem a ganhar com o regresso do teu irmão. O casamento é também do interesse dele. É por isso que eu sei que a sua palavra é verdadeira.
- Confia demais, minha mãe.
A rainha suspirou.
- Além disso, é um favor que me faz. Aquela bruxa nunca foi de bons prenúncios. E temo que mais cedo ou mais tarde pudesse causar danos no reino.
- Sabendo o ódio que Rómulo sente por ela...
- Ela está condenada. - sorriu a rainha - Condenada...

A tarde ia a meio quando Rómulo e os cinco homens avistaram a caverna de Luath.
- Façam pouco barulho agora. - avisou - Todo o cuidado é pouco.
Um dos soldados soltou um pequeno grito quando bateu com o seu joelho numa pedra.
- O que é que eu disse, Aramith? - perguntou Rómulo irritado - Pouco barulho!
Escondiam-se de rocha em rocha até chegarem perto da entrada da caverna. Quando estavam prestes a entrar, o barulho de inúmeros corvos fez com que estes olhassem para o céu.
Os corvos voavam em círculos e, subitamente, o vento fraco que soprava aumentou a sua intensidade.
- Feitiço! Feitiço! - exclamava Aramith amedrontado - Vamos morrer!
Rómulo apontou a sua espada em direcção à garganta de Aramith.
- Cobarde! A única pessoa que morrerá hoje é a bruxa! - exclamou Rómulo.
Os seis soldados entraram na caverna, onde a escuridão era total.
- Mal vejo onde piso. – Yaro, um dos outros soldados, avançava lentamente seguindo Rómulo.
- Ela já sabe que estamos aqui. – suspirou Rómulo – Prepararem as vossas espadas.
À excepção de Rómulo todos os outros soldados tremiam, receosos do que pudesse acontecer. Uma coisa era enfrentar um homem em combate, outra completamente diferente era ter como adversária uma bruxa. Tanto Yaro como Aramith repetiam muitas vezes que as bruxas não eram humanas. Teriam eles hipóteses contra alguém assim?
- Cumpre o teu dever – uma voz mórbida ecoou dentro da caverna – Aqui estou, daqui não fugirei. Faz o que tens a fazer. – disse Ofélia, aproximando-se de Rómulo.
Os restantes soldados afastaram-se, Ofélia encostou o seu pescoço à lâmina da espada do guerreiro.
- Se é o que desejas. – a bruxa sorriu – Força!
Rómulo paralisou alguns segundos, aquela criatura…a face da bruxa estava cheia de pó, o seu sorriso desvendava a falta de dois dentes, cheirava mal como se nunca tivesse tomado banho, os seus cabelos negros desalinhados dançavam ao sabor do vento que mesmo dentro da caverna continuava forte.
- Vamos, Rómulo! Bravo soldado do reino! Mata-me! Elimina-me antes que conte o teu segredo! Deixa o meu sangue correr até ficar estendida no chão inerte antes que revele o porquê do teu ódio! Antes que grite aos céus o teu apelido!
O rosto de Rómulo soltava fúria, apertou a estada com força, já não conseguia controlar o ritmo da sua respiração, desencostou a espada do pescoço da bruxa e em um movimento rápido atingiu um dos seus soldados, de seguida o segundo e o terceiro, sobrando apenas Yaro que tentou fugir enquanto gritava que a bruxa tinha possuído Rómulo.
- Tghar’em n’art! – exclamou a bruxa.
Vários corvos mergulharam na direcção de Yaro, provocando uma morte demorada e dolorosa.
Rómulo olhou para a bruxa fora de si.
- Um dia… Um dia acabaremos com isto!
O soldado dirigiu-se para a saída da caverna perante o olhar atento de Ofélia que sorria enquanto os corvos iam repousando nos seus braços.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Capítulo VI (Parte IV)

- Julgo que te devia uma visita, – observou Amara, ao entrar no quarto despido, improvisadamente transformado numa cela – príncipe Adhemar.
O príncipe ergueu o olhar, sobressaltado. Havia, na expressão das suas orbes, um medo quase incontrolável, como se o tempo passado naquela cela tivesse quebrado toda a sua arrogância. E o seu olhar era, de facto, suplicante e assustado quando perguntou:
- Vieste para me matar?
Amara sorriu, enigmática.
- Deste-me algum motivo para que o faça? – inquiriu.
- Não! – exclamou o príncipe, perturbado – Não, eu… Eu juro que não fiz nada!
- Então diz-me… Porque julgas que vou acabar com a tua mísera vida?
Adhemar estremeceu.
- Eu… - balbuciou – Não sei… Eu sou o inimigo. Talvez… me tenhas condenado.
Rasgando o silêncio, o riso cristalino da mulher encheu o espaço. Era impossível não se divertir ante a abjecta humilhação do jovem e boémio príncipe. Aquele que, em tempos, fora destinado a ser o seu esposo, era agora apenas um destroço.
- Ainda não, Adhemar. – declarou, e sorriu ao ver o alívio que se desenhava no rosto do príncipe – Ainda posso encontrar alguma utilidade para ti. Desde que continues a comportar-te devidamente… ainda podes viver.
Adhemar assentiu efusivamente.
- Sim… - balbuciava – Sim. Eu faço o que quiseres. Tudo o que quiseres.
- Óptimo. – concluiu Amara – Na verdade, estava apenas de passagem. Tenho uma visita mais… premente a fazer a outro prisioneiro. De momento, vou deixar-te em paz.
Amara não esperou pela resposta. Limitou-se a voltar costas ao príncipe e a deixar a cela, sorrindo vagamente quando ouviu o som da chave na fechadura enquanto o guarda atrás de si trancava a porta.
- Agora o próximo. – declarou Amara, com um sorriso misterioso – O meu querido Caledon.

Havia uma ausência no seu olhar, como se divagasse na distância do horizonte infinito, e o seu rosto parecia tão fechado na sua sombra soturna que Delenia hesitou em interromper os seus pensamentos. Na sua mente, contudo, havia também uma sombra, a certeza de uma traição cometida contra alguém que, ainda que fosse, na verdade, um inimigo, conquistara, com a sua estranheza, um coração frio. E ela precisava de o ver, de se explicar… De confessar o turbilhão de sentimentos que agitavam as paredes do seu mundo e a incerteza do sentimento que a levara a salvar uma vida que entregava, depois, nas mãos dos seus antagonistas.
- Lorde Fadenbran. – murmurou, hesitante, sem saber se ele a ouviria. Soran, contudo, voltou-se em resposta ao seu chamado e, sorrindo levemente, fitou-a com um olhar profundamente triste.
- Já não, receio. – observou – Agora sou só mais um rebelde. Suponho que isso torna os títulos desnecessários.
Delenia assentiu.
- Eu… - disse – Queria pedir-lhe…
- Pedir-te. – corrigiu Soran, benevolente.
- Isso… Queria pedir a tua ajuda.
- Temo que não possa fazer muito por ti – prosseguiu o lorde, pensativo – se me vens pedir que interceda pelo teu cativo. Ele é um Raven e o ódio de Amara não tem limites… Além disso, não podes dizer que o Adhemar seja uma pessoa exemplar.
- Eu sei. – replicou Delenia – Não me atreveria a esperar tanto. Eu só queria… Queria vê-lo. Queria explicar-lhe que…
Soran interrompeu-a.
- Permite-me que te deixe um conselho. – disse – Afasta o teu coração desta guerra. Enterra-o bem longe de ti, se puderes. É ele que te fala no príncipe. Foi ele quem te impediu de o deixar morrer. E, se não o silenciares, acabará por te condenar.
- Vês demasiadas sombras no amor – observou Delenia – para quem é, afinal, o consorte da líder.
Soran lançou-lhe um olhar vazio, gravando o arrependimento na mente de Delenia antes mesmo que as palavras acabassem de se desvanecer.
- Pareço um homem de sorte, não é verdade? – perguntou – A verdade é que o sou. Calana Westraven… Não. Amara Morningstar é a mulher mais forte e nobre que conheci em toda a minha vida. Mas é também a força base da nossa guerra e isso exige sacrifícios. Temo que, um dia, acabarei por a perder. Mas estou já demasiado perdido para seguir o meu próprio conselho. – acrescentou, com um suspiro cansado.
Delenia não respondeu. Não saberia o que dizer quando falavam da mulher que mais admirava, mas que, ao mesmo tempo, mais temia com a sua justiça fria e o seu voto de vingança sem piedade.
- Mas querias pedir a minha ajuda. – observou Soran, quebrando o silêncio – O que posso fazer por ti? Sabes que não é a mim que compete decidir quem pode ver os prisioneiros.
Delenia assentiu.
- Verdade. Mas talvez pudesses falar com a Amara sobre o assunto…
- Talvez pudesse. – concordou Soran – E talvez ela me ouvisse. Mas tens a certeza de que estás disposta a deixar esse assunto nas minhas mãos?
- Eu não…
- Eu acredito que confias em mim. Mas não crês que Amara olhará de outra forma para o teu pedido se fores tu própria a fazê-lo? Não julgas que será mais provável que te aceite se lhe falares com as tuas próprias emoções?
A mulher hesitou.
- Amara… - murmurou – suspeita de mim.
- Tu também o farias – replicou Soran, compreensivo – a quem entrasse nos teus domínios acompanhado do inimigo. A ordem era matá-lo e não capturá-lo e temos de admitir que isso falhou. Mas a Amara não é de gelo – acrescentou, vendo o desânimo da mulher – e estou segura de que entenderá as tuas contradições, se lhe provares que pode confiar em ti.
- Mas como posso fazê-lo?
Soran sorriu.
- Tenta. – declarou – Com todas as forças daquilo que sentes. Assim, independentemente do resultado, saberás que deste tudo de ti. E Amara saberá quanto vales afinal.

domingo, 19 de julho de 2009

Capitulo VI (Parte III)

Gélida. Sem um pingo de emoção que fosse visível. Nenhum dos presentes conseguia assistir a qualquer manifestação de dor da rainha. Enquanto o padre Ardheus recitava o discurso habitual em funerais, ela já o sabia de cor e estava muito mais interessada no pagamento que se seguiria. Os nobres presentes surpreendiam-se com a quietude da rainha e de Elara. Ambas olhavam para o caixão sem soltar uma lágrima, sentimentos diferentes, pensamentos diferentes que os presentes não podiam saber. Alessandra só queria que aquele momento perturbador acabasse. O seu discurso foi curto, e mais do que falar do rei, falou do que planeava.
- Amanhã tudo ficará diferente! A vingança será terrível. Quem provocou esta tragédia não ficará impune! Quem levou o meu filho terá o castigo merecido! O rei partiu mas o reino não ficará mais fraco! Garanto-vos! – exclamou a rainha com um tom de voz amargo mas convicto – Farei com que se arrependam eternamente.
Rómulo aproximou-se de Elara, tocou-lhe no ombro e ambos afastaram-se dos presentes.
- A rainha está tresloucada. – afirmou Rómulo – Procura o autor deste bilhete.
O homem entregou o pedaço de papel à princesa, esta leu e voltou-o a dobrar.
- Pensas que fui eu? – questionou Elara –Pois, estás enganado.
- Se não foi a princesa mais uma razão para preocupação. Quem anda pelo castelo que sabe isto tudo? Há mais alguém que sabe mais do que parece. E se esse alguém também tiver conhecimento dos nossos planos?
As pessoas iam abandonando a cerimónia. Dois soldados atiravam terra para cima do caixão para o cobrirem e, por cima deles, um corvo andava em círculos em silêncio, como se não quisesse ser notado.
O caixão desaparecia lentamente, aos olhos da rainha, e esta não evitou um sobressalto quando alguém lhe tocou nas costas.
- Minha rainha – cumprimentou Arus Razza – Primeiro, queria deixar os meus pêsames pelo trágico acontecimento. Mas não é só isso que me traz cá.
- Presumo que queiras saber notícias de meu filho, noivo da tua semente – suspirou a rainha – Pois ainda nada sei. Amanhã partiremos.
- Mais do que isso, tenho uma oferta para si, minha rainha – sorriu Arus Razza – Eu conheço muito bem a floresta. Na minha juventude muitas vezes a percorri. Fazia parte de um grupo de corajosos…ou estúpidos que gostavam de quebrar barreiras e fronteiras. Os meus conhecimentos podem ser muito úteis.
A rainha olhou para ele sem disfarçar o incómodo.
- Queres aliar-te aos meus soldados? – questionou – Quererás colocar a tua vida em risco…pelo meu filho?
- Poderia mentir e dizer que sim. Também poderia mentir e dizer que era pela minha filha, mas na verdade há algo mais que eu quero.
- E o que seria?
- A morte da bruxa!
- Como? – perguntou a rainha, incrédula – O que estás a sugerir?
- O resgate do seu filho em troca da cabeça da bruxa Ofélia.


Isís também já não estava no local do funeral, andava aos círculos pelo jardim mais próximo. Subitamente parou e deixou-se cair. As lágrimas caíram pelo rosto, quando começou a arranjar a erva, furiosamente repetindo “Estive tão perto, estive tão perto”.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Capítulo VI (Parte II)

- Bons dias, senhores. – cumprimentou Amara, entrando na divisão onde, em silêncio, os seus principais aliados a esperavam. Havia uma estranha tranquilidade no seu rosto e, pela primeira vez em muito tempo, havia nos seus lábios o esboço do que parecia ser um sorriso genuíno.
- Lorde Fadenbran. – prosseguiu ela, usando os títulos formais, enquanto, com o olhar percorria, um a um, os rostos dos seus companheiros – Lorde Gray. Magister.
Em resposta à sua saudação, Soran e Andros assentiram. Mordechai replicou:
- Senhora Morningstar.
Amara sorriu, sentando-se graciosamente na cadeira que fora deixada livre para si.
- Não fomos bem sucedidos – começou – na nossa conspiração. Forças que desconhecemos impediram os nossos gestos. Ainda assim, não podemos dizer que toda a nossa luta foi em vão. Lamento, evidentemente, a morte de um dos nossos melhores companheiros e não creio que o que conquistámos justifique a sua perda, mas a verdade é que não o podemos recuperar. Resta-nos agradecer pelo que conseguimos.
- O rei está morto. – observou Soran – E, apesar dos imprevistos, consegui trazer-te um dos teus inimigos. Diria que não é pouco, mas…
- Mas há mais, meu caro. – interrompeu Amara – Com toda a agitação da noite passada, esqueci-me de te referir esse facto. Temos o príncipe herdeiro na nossa posse.
Soran vacilou.
- Então, a Delenia foi bem sucedida? – questionou – Notei o seu desaparecimento, mas nunca pensei...
- Sim. – assentiu Andros – Se bem que eu preferia que ela tivesse morto o príncipe. Todos sabemos que a rainha não se poupará a esforços para o recuperar.
- Deveras. – concordou Amara – E é por isso mesmo que a vida do principezinho é preciosa. Creio que nos conquistará um exército.
Mordechai fitou-a, surpreendido.
- O que tens em mente? – perguntou.
Amara suspirou.
- Não o posso revelar, ainda. – disse – Na verdade, espero não ter de envolver o corvo na negociação. Custar-me-ia recusar ao direito que tenho sobre a sua vida. Mas o que tiver de ser, será. Precisamos de aliados, caríssimo, e de aliados poderosos. E quem melhor que o reino que tão, benevolentemente, tem ignorado a nossa conspiradora presença?
Soran sorriu.
- Vais propor aliança a Agaloth?
- É esse o meu plano. – assentiu Amara – Afinal, todos nós sabemos o quanto o rei odeia os senhores de Lithian. E quando os Raven tiverem dito adeus à vida… Bem, eu tenho um nome que me garante bastantes privilégios. Tenho muito a oferecer ao senhor de Agaloth.
Andros esboçou um sorriso enigmático. Não era só a opção mais acertada, era também a rápida acção de que precisavam. A capital do reino ficava nas proximidades, uma vez que, de todos os reinos que faziam fronteira com Agaloth, Lithian era o único que, apesar de todos os ódios conhecidos e por conhecer, nunca estivera em guerra com o reino vizinho.
- E quando vais fazer isso? – perguntou.
- Agora mesmo. – respondeu Amara – Mordechai, meu amigo, preciso dos teus serviços.
- Ordena, caríssima, - assentiu o homem – e será como quiseres.
- Preciso que partas para a capital. Levarás contigo o sinal das minhas armas e, em meu nome, pedirás audiência ao rei. Dir-lhe-ás que tenho comigo toda a urgência dos tempos. E dir-lhe-ás que vais em nome de Calana Westraven.

- Tens a certeza do que estás a fazer? – perguntou Soran, quando ficaram a sós.
No silêncio entre ambos os seus corpos, as suas almas pareciam clamar uma pela outra, mas a mordaça que pairava sobre os planos de Amara parecia revelar aos olhos do lorde uma mulher diferente, uma rainha que, apesar de toda a sua serena beleza, não deixava de ser um enigma para os seus sentimentos.
- Sabes que sim, meu querido. – respondeu Amara, aproximando-se e, nesse momento, Soran voltou a ver a mulher que amava desde longos anos – Sei que julgas que arrisco demasiado, - prosseguiu – ao revelar-me abertamente a um homem que, com uma simples ordem, pode lançar sobre nós uma força imensa o suficiente para nos aniquilar em poucos momentos. Mas também sabes que Lithian dispõe do mesmo poder e, se suspeitam de que o príncipe veio nesta direcção…
Soran assentiu.
- Não questiono as tuas decisões. – disse – Apenas… Apenas tenho medo de te perder.
Nesse momento, os lábios de Amara fundiram-se aos seus num beijo apaixonado, longo e voluptuoso.
- Nunca me perderás. – murmurou ela, quando os seus lábios se apartaram – Nunca.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Capitulo VI (Parte I)

Um novo dia nasceu. Porém, as nuvens tétricas adiavam a manifestação do sol. Era como se uma força maior desejasse mergulhar aquele princípio do dia no negrume anunciando a cerimónia fúnebre que teria lugar no campo santo Cellios, sítio onde estavam sepultados todos os membros reais de Lithian. Não obstante a hora pouco adiantada, já existiam diversas movimentações para organizar o funeral do rei. Vários homens colocavam em ordem a sala onde sucederia a despedida final. O responsável por tudo seria o padre Ardheus, que se congratulou por mais uma excelente oportunidade de encher os bolsos.
O homem saiu de casa cedo e dirigiu-se para a sala fechada onde já repousava o corpo de Amon. Dois soldados protegiam a porta de entrada. O padre sorriu e deu os bons dias aos dois homens. Estes afastaram-se para permitir a entrada do sacerdote. A porta fechou-se, deixando o padre sozinho com o cadáver. Ardheus sorriu, enquanto tirava um pequeno cantil que carregava escondido no seu paramento. Abriu e deu uma golada forte, limpou os beiços com o seu braço e voltou a sorrir.
- Ó meu amigo! Que fazes aí estendido? Isto aqui é uma bela pinga!
Aproximou-se do corpo inerte e esticou o seu braço colocando a vasilha de vidro em cima dos lábios do rei, tentando que ele bebesse.
- Não queres? – questionou, surpreendido – Olha para isto, estás a deitar tudo para fora. – voltou a beber do cantil – Não te dou mais.
O volume do discurso do padre atraiu a atenção de Elara, que entrou na sala com os dois guardas.
- O que é que se passa aqui? – perguntou Elara incrédula – Bêbado? A esta hora da manhã? Quando vai guiar um funeral de um nobre?
- Também quer? – perguntou Ardheus, amarrando o cantil contra o seu corpo, tentando esconder – É para mim!
- Guardas! Levem-no! Mergulhem-no no rio! – ordenou a princesa – E reza ao teu deus para que saibas nadar! Precisas de água fria para acalmares.
Cada um dos guardas pegou num dos braços do padre e começaram a arrastá-lo da sala.
- Ó minha princesa… – começou o sacerdote – Mais vale um padre bêbado do que uma mulher que pensa que tem o mundo nas suas mãos quando é apenas um títere do destino…
Elara seguiu os sorrisos alucinados do padre, perplexa por aquilo que tinha acabado de ouvir.

No quarto da rainha, Dyniana limpava as mobílias com todo o cuidado para não acordar a sua senhora. Tinha ordens para apenas a despertar quando estivesse tudo pronto para a cerimónia fúnebre. Porém, quando, sem querer, com o seu espanador derrubou uma pequena estátua de madeira os olhos da rainha descerraram-se.
- Perdoe-me, minha rainha, – disse Dyniana – fui uma desastrada.
- Não faz mal. A verdade é que já não me encontrava no meu sono mais profundo. A inquietação que sinto é enorme. Não me permitiria muito mais tempo de sossego.
Alessandra olhou para uma pequena mesa ao lado da sua cama, onde Dyniana tinha por hábito servir-lhe o pequeno-almoço.
- Que papel é este em cima da mesa? – interrogou a rainha – Foste tu que deixaste?
- Não, minha rainha. - respondeu Dyniana, olhando para a mesa, surpresa.
A rainha agarrou o papel e desdobrou-o.
“Rainha! No meio da floresta, na fronteira com o nosso reino, onde os corvos se reúnem e o sol nasce mais devagar estão os seus inimigos! Está o seu filho! Não envie novamente um grupo tão fraco como fez, não subestime tais adversários! Estão mortos! Todos mortos! Se realmente deseja o seu filho de volta organize um grupo com os melhores, só assim ostentará hipóteses.”
Alessandra voltou a dobrar o papel.
- Dyniana – chamou – Procura Rómulo, diz-lhe que esteja na sala do trono dentro de meia hora. É urgente.

- Fria! Fria! Fria! – exclamava Ardheus enquanto tentava sair do rio - Deixem-me sair!
- O que se passava, velho balofo? – questionou um dos guardas – Não gostas de água? É um bela pinga.
- Mergulha a cabeça! – ordenou o guarda que apontava com o seu arco para o padre – É a única maneira de te refrescares.
- A água está gelada! Vou morrer aqui! Deixe-me sair! – apelava o padre.
- Mergulha a cabeça várias vezes e deixamos-te sair. – disse o outro guarda.
- Está bem, está bem. – disse Ardheus conformado.
- Dez vezes! – exclamou o guarda que ameaçava com a arma.
Enquanto o padre mergulhava a cabeça os guardas sorriam e contavam em coro.
- Dez…nove…oito…sete…seis…cinco…quatro….três…dois…dez…
- Como dez? É a última! – gritou Ardheus desesperado.
O guarda atirou, a flecha passou bastante próxima do padre.
- É a última quando nós quisermos. Continua!

- Bom dia, minha rainha. Algo a perturba? – questionou Rómulo, ajoelhando-se perante Alessandra – Em que posso ajudar?
A rainha esticou-lhe o bilhete. O homem leu e olhou para ela perplexo.
- Alguma ideia sobre o facto desse bilhete estar no meu quarto?
- Não, minha rainha. Nenhuma.
- Então, sabes o que quero que faças?
- Que descubra quem foi?
- Obviamente. Foi alguém do interior do castelo. É imperativo descobrir quem entrou nos meus aposentos, quem conseguiu fintar os guardas. Não que eles sejam muito inteligentes, mas são numerosos.
- Mas e o conteúdo do bilhete? – perguntou o guerreiro – Será verdade?
- É muito provável que o seja. O grupo que enviei era apenas carne para canhão. Para ter alguma ideia sobre as forças que enfrentamos. Amanhã organizaremos um grupo para resgatar o príncipe.
- Amanhã pode ser tarde, minha rainha.
- Rómulo – sorriu a rainha – Pensas de facto que iam se dar ao trabalho de raptar o príncipe para o eliminar? Querem um trunfo para defrontar o reino. O que eles deviam saber é que o reino incidirá sobre eles! Será que aquelas pobres almas sabem o que é o inferno?

domingo, 19 de abril de 2009

Capítulo V (Parte VI)

Já estavam cansados de percorrer a escuridão dos bosques quando a súbita percepção de um cheiro fétido denunciou a presença do que há muito procuravam. Estavam já relativamente longe do local onde haviam sepultado os mortos do inimigo e começavam a pensar em desistir da sua busca, mas, guiados pelo fedor que, a cada passo, se tornava mais forte, não demoraram muito a descobrir, percorrido por alguns corvos que dele se alimentavam, o ainda reconhecível cadáver de Gälart.
- Está aqui. – declarou Mordechai, forçando-se a conter um esgar de asco – Não precisamos de prosseguir mais.
- E agora? – perguntou um dos soldados – O que fazemos com ele?
- O mesmo que com os outros. – replicou Mordechai, terminante, apesar de se sentir tão relutante em aproximar-se daquele destroço como qualquer um dos seus companheiros – Não o podemos deixar aqui para ser encontrado.

Amara chegou à praça central de Varin a tempo de ver dois dos seus homens, em tempos escondidos em Lithian, descer de uma das carruagens, trazendo consigo uma figura cuidadosamente manietada, com o rosto totalmente encoberto por um capuz negro. Nesse momento, também, o seu olhar encontrou, descendo da outra carruagem a figura de que há muito esperava notícias, agora também vestido com o negro dos condenados, mas fitando-a com um sorriso triunfante.
- Soran… - murmurou Amara, permitindo-se um sorriso leve.
- Boas noites, minha senhora. – cumprimentou o lorde, curvando-se numa vénia formal. Depois, aproximou-se dela e, com ternura, beijou-a numa das faces.
Os braços dela enroscaram-se no corpo dele.
- Boas noites, meu belo lorde. – respondeu Amara, apertando o corpo dele contra o seu – Meu querido…
Relutante, mas consciente do olhar dos seus fixo em si, Amara libertou-o dos seus braços. Em seguida, com um gesto leve, apontou para o prisioneiro.
- É quem eu penso?
Soran sorriu.
- Ele mesmo.
O rosto de Amara tornou-se gélido.
- Imagino que a tua viagem te tenha fatigado, - disse, compreensiva – mas entenderás que quero tratar desta situação agora mesmo. Se te quiseres retirar, tens a minha permissão.
- Sensibiliza-me a tua preocupação, Amara. – replicou Soran – Mas deves compreender que não perderia isto por nada no mundo.
- Já o imaginava. – replicou ela, com um sorriso. Depois, avançou na direcção do prisioneiro e, indicando, com um gesto, que o deixassem tombar no chão, fitou, apreciativamente, a figura trémula.
- Pergunto-me se sabes – disse, caminhando em redor do prisioneiro – que todos os crimes têm um castigo, ainda que, durante tanto tempo, te tenhas julgado infalível. Pergunto-me se sabes que chegou a hora da expiação.
Um soluço brotou da garganta do prisioneiro, enquanto Amara se baixava, forçando-o a ajoelhar. Depois, lentamente, removeu-lhe o capuz, erguendo-se, depois, altiva, diante dos olhos ainda aturdidos do homem.
- Pergunto-me – disse ela, com um sorriso de gelo – se ainda me reconheces.
Durante alguns momentos, os olhos de Caledon não viram nada, aturdidos pela súbita passagem da escuridão à bruxuleante luz das tochas. Depois, a sua visão encontrou, pálido e espectral, o rosto da sua executora, um rosto que ele próprio expulsara do seu mundo, carregada com o peso das suas mentiras e destinada a morrer na solidão do exílio.
- Calana… - murmurou, incrédulo – Não… Não pode ser… Tu não sobreviverias…
Os lábios da mulher contraíram-se de ira. Lentamente, Amara desembainhou a sua espada, deixando que a lâmina brilhasse sob a luz das chamas ondulantes, como um prenúncio de morte. Uma morte ainda distante, precedida pelos fúnebres vultos do medo e da dor.
- Eu sobrevivi, Caledon. – respondeu ela, aproximando-se, lentamente – Tu não o farás.
A espada desceu, lentamente, como num baile sádico. Como um beijo suave, a lâmina pousou no peito ofegante do antigo lorde, fazendo com que um gemido de pavor brotasse dos seus lábios.
- Por favor… - implorou ele – Por favor, não…
- Nem penses – interrompeu Amara – em implorar por misericórdia. Não quando tu próprio não a tiveste, depois de seres tu o culpado da morte da nossa mãe e de me teres condenado pelos teus crimes. Tu vais morrer, não tenhas a menor dúvida. Mas não vai ser assim tão fácil.
A espada retornou à sua bainha. Depois, silenciosamente, Amara baixou-se, até o seu olhar se encontrar à altura do de Caledon, e, com um sorriso gélido, ela prosseguiu:
- Durante dias e dias, no futuro por vir, tu serás o meu jogo.
Uma violenta bofetada aturdiu o prisioneiro, ainda pendente das palavras da que era, agora, a senhora da sua vida.
- A cada hora, – dizia ela – a cada instante em que a vontade me ditar, eu irei por ti. Tu, que estarás fraco e indefeso, à minha espera, na mais escura das celas do meu pequeno território. Perante mim, serás apenas um objecto e, sempre que te procurar, saberás que é a agonia quem te busca, porque a dor será a única coisa que encontrarás em mim. E isto eu te garanto… Quando eu me cansar de ti e decretar, enfim, a tua execução, há muito que me terás implorado pela morte.
Desta vez, um pequeno punhal surgiu na sua mão e, com um sorriso cruel nos lábios, Amara rasgou a veste do prisioneiro, expondo a alva pele do seu peito.
- Calana… - balbuciou Caledon, consumido por um pavor que não podia já controlar – Por favor, Calana… Eu sou o teu irmão!
A lâmina rasgou um longo corte no seu peito, arrancando-lhe um violento grito.
- Não me devias ter lembrado disso. – respondeu Amara. Depois, o punhal voltou a cortar.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Capitulo V - Parte V

A chuva morosa acompanhava a noite insípida. O silêncio abraçava aquele particular lugar bem no meio da floresta. No chão estendia-se o corpo enlameado do poeta. Seis corvos andavam em círculos sobre o cadáver. Um deles, esguio e ágil, mergulhou na direcção do defunto. Os quatro seguintes seguiram-no, enquanto o último, sebento e com uma pequena ferida por cima do seu olho esquerdo pousou no tronco de uma árvore. Bicavam o corpo inerte. Um deles atingiu um dos olhos vidrados de Galärt, fazendo com que líquido ainda fresco deslizasse no rosto do primo do príncipe. Uma sombra entre os arbustos fez com que os corvos abandonassem o corpo, alinhando-se no tronco onde já se encontrava o corvo ferido. Ofélia surgiu entre os arbustos, levantou levemente a longa saia rasgada, para não a sujar numa poça que misturava lama e sangue. Aninhou-se perante o corpo e passou os dedos vagarosamente pelo pescoço rasgado do cadáver. Olhou para os dedos manchados de sangue e soltou um sorriso. Colocou-os dentro da sua boca e absorveu o sangue, levantou-se, e olhou para os corvos.
- Dhemiema tart wisho?
O corvo mais descarnado abaixou a cabeça e num ápice desapareceu voando.
- Lamento, meu querido. – sorriu Ofélia - A vida de boémia não serve para nada no campo de batalha. Perdeste pelo que não quiseste ser. Estamos em guerra mesmo quando estamos em paz. De um momento para o outro tudo muda. A tua mente foi contaminada pelas mulheres de parca inteligência com quem pernoitaste. Mas não te preocupes. A tua morte acabará por ser vingada. Não que eu tenha algum interesse numa desforra. Apenas é preciso fazê-lo. Elara não sabe ainda. Mas, mais do que qualquer um, é um fantoche. O meu fantoche!
A bruxa saiu do local, seguida pelos corvos.

Entretanto, Elara avistou o castelo, ainda faltava um pouco para a alvorada, mas ainda teria que chegar ao seu quarto sem ser notada.

Arus levantou-se para ir buscar um copo de água. Dirigiu-se à cozinha de uma maneira silenciosa. A sua filha dormia no sofá, o cobertor cobrindo-lhe o corpo inteiro, e o homem nem se aproximou para não a incomodar. Abriu a porta do armário e um copo caiu, estilhaçando-se no chão. Depois, os seus olhos gelaram de horror. A cabeça de sua filha estava pousada numa das prateleiras. O sangue escorria por entre o queijo oferecido por um dos mais conceituados produtores daquela iguaria. Caiu de joelhos no chão e vomitou. Esteve largos minutos a chorar em agonia. Depois, levantou-se em dificuldade e dirigiu-se à sala, ganhou coragem e destapou o corpo, que, como suspeitava, estava decapitado. Controlou-se para não voltar a tombar, deu alguns passos em direcção ao seu quarto, olhou uma última vez para trás e viu um vulto a levantar-se debaixo do cobertor.
- É hora de vingança! – exclamou uma voz bem conhecida – Morrerás, Arus Razza!
O cobertor caiu. Ofélia correu em direcção dele para o atacar…Engoliu em seco…Suspiro…Levantou-se da cama em sobressalto…Tinha sido tudo um sonho. Tirou a camisola de pijama toda transpirada. Estava ofegante. Subitamente, uma certeza assolou-lhe o pensamento. Tinha que matar a bruxa antes que esta o matasse a ele.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Capítulo V (Parte IV)

Quando Mordechai regressou, não foi possível evitar que um suspiro de alívio se soltasse dos lábios de Amara, tranquilizada ao ver que o seu amigo estava bem e que se fazia acompanhar pelos homens que com ele haviam partido. Havia, contudo, algo mais entre eles, uma presença que lhe dizia que muitas respostas viriam, naquele momento, à luz.
- Voltámos, Amara. – anunciou Mordechai, ao chegar junto dela – E trazemos-te a vitória.
Amara assentiu.
- Quantos perdemos? – perguntou.
- Nenhum. – replicou o seu amigo, sorrindo levemente – Temos alguns ferimentos ligeiros, é verdade, mas os números do adversário eram reduzidos. Vencemo-los sem dificuldade.
- Muito bem. – assentiu Amara – E quanto a sobreviventes?
Suavemente, Mordechai esboçou um gesto na direcção dos seus acompanhantes. Imediatamente estes arrastaram na sua direcção a figura suja e deplorável de um prisioneiro que, cuidadosamente manietado e de olhos vendados, foi forçado a ajoelhar diante da mulher que, ainda que ele não o soubesse, detinha nas mãos a sua vida.
- Creio – prosseguiu Mordechai, indicando o homem – que te dará todas as informações que quiseres. Isto se quiser escapar à dor… - acrescentou, sabendo que o prisioneiro o escutava.
- Pois deixa que me veja, – replicou Amara – para que saiba que tudo o que disser será a sério.
A venda foi removida dos olhos do prisioneiro, que, estremecendo, fitou, em desespero, o rosto da sua captora.
- Quem te enviou? – inquiriu Amara, bruscamente.
- Eu… - balbuciou o homem, hesitante - Eu não…
Com um gesto fulminante, Amara desembainhou a espada que sempre a acompanhava, encostando a lâmina à garganta do soldado.
- Não sou paciente. – declarou – Não te vou dar muitas oportunidades. Quem te enviou? Responde ou morre!
- A rainha! – replicou o homem, desesperado – A rainha Alessandra… Oh, por favor… Por favor, poupe-me.
Amara sorriu.
- Vou pensar sobre o teu caso. – declarou – Se cooperares o suficiente, talvez…
- Sim! – assentiu o prisioneiro, desesperado – Eu digo-lhe tudo! Tudo o que quiser, mas, por favor…
- Veremos. – interrompeu Amara – Viste os mortos do teu grupo? – perguntou.
O homem anuiu.
- Quantos sobreviveram?
Por um momento, o prisioneiro hesitou, mas um olhar à sinistra expressão de Amara dissuadiu-o da sua relutância.
- Um… - replicou – Só um… O nosso líder fugiu…
- Fugiu? – repetiu Amara, rindo – Vais precisar de muito para me convencer disso… Quem era o vosso líder?
- Gälart… - respondeu o prisioneiro, trémulo – Juro que é verdade… Gälart, o primo do príncipe… Ele não queria vir, mas a rainha disse-lhe que uma recusa lhe custaria a cabeça…
- Basta. – interrompeu Amara – Se estamos a falar do mesmo Gälart que eu conheci, uma fuga era o mínimo que se poderia esperar dele. Mordechai… - inquiriu, desviando a sua atenção do prisioneiro – Temos uns aposentos adequados ao nosso hóspede?
Mordechai sorriu.
- Ainda temos alguns quartos vagos – declarou – na ala do príncipe.
- Nesse caso, - indicou Amara – tratem de o instalar devidamente. E tem atenção… - acrescentou, fitando o prisioneiro – A mais pequena tentativa, o menor dos pensamentos no sentido da fuga ou de qualquer tentativa contra nós serão castigados com a morte. Estamos esclarecidos?
O homem respondeu com um aceno assustado.
- Muito bem. – concluiu Amara – Então não preciso de mais nada de ti.

- Gälart não se calará. – declarou Amara, ao reunir com os seus mais poderosos aliados. Sentia, fixos em si, os atentos olhos de Mordechai, o sempre apreciativo olhar do mestre e a perturbadora mirada de Mirian, a criança vidente. – Se conseguiu evadir-se, a corte de Lithian não tardará a saber da nossa existência.
- O poeta está morto. – anunciou, subitamente, a voz dos abismos, pelos lábios de Mirian – Procura-o nos bosques onde se deu o confronto, mas a alguma distância. Encontrarás o seu cadáver degolado.
Mordechai esboçou um aceno sombrio.
- Mas quem foi?
- Não sei. – replicou Mirian, a sua voz novamente infantil indicando que o poder se afastara – As vozes não mo revelaram. Dizem que não é necessário. Essa presença manterá o seu silêncio… pelo menos, para já.
- Pois vivamos com o que temos. – concluiu Amara – Procuraremos o corpo do poeta. Enterraremos os mortos desta luta. Nenhum sinal de nós será deixado para trás. Afinal, somos só uma inocente povoação de Agaloth.
As suas palavras foram recebidas com assentimentos silenciosos. Quando se preparava para abandonar a reunião, contudo, a voz dos abismos voltou a falar, calma e tranquila, mas terminante e verdadeira.
- Tens uma visita à tua espera, Amara. – disse – A tua vingança chegou.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Capitulo V - (Parte III)

Faltavam poucas horas para o amanhecer e o pai de Isis não tinha pregado olho. Não bastavam os acontecimentos no casamento da sua filha como também encontrou na sua casa uma surpresa macabra. A ideia inevitável surgiu na sua mente. Seria tudo obra da bruxa? Seria tudo uma questão de vingança?
Por mais que tentasse afuguentar da sua cabeça tais cogitações, a verdade nua e crua é que tudo era uma coincidência muito grande.
A bruxa estragara o casamento da sua filha, e, não satisfeita, tentara pregar-lhe um susto de morte.
Levantou-se da sua cama, atormentado. A pintura que passara horas a apagar da parede, era uma ameaça, um prenúncio ou simplesmente uma brincadeira mórbida?

- Fujam! - exclamou Lydro - Rápido! Rápido!
O comandante do pequeno grupo de resgate abria caminho de volta pela floresta quando foi colhido por uma flecha, caindo inerte com os seus olhos vidrados e surpresos. Gälart ficou imóvel perante o corpo caído. Mais que nunca o receio de morte estava bem presente. Seriam aqueles
os últimos minutos da sua vida?

- Anda! - exclamou Elara, saindo detrás de umas árvores - Não ouviste? Anda comigo se quiseres viver!
- Elara...- chamou Gälart surpreso - O que fazes aqui?
- Eu não sou nenhuma princesa indefesa, meu rico primo - começou a princesa zangada - Quis salvar o meu irmão, mas não teremos oportunidade... Não agora...Anda comigo se quiseres viver. Junta-te ao teu fantástico grupo de combate se queres transformar-te em esqueleto nesta horrenda floresta.
Sem pensar muito o homem decidiu acompanhar a prima. Enquanto isso os restantes elementos do grupo iam tombando um a um.

Por dentro da floresta, Elara e Gälart só pararam quando estavam bem longe do conflito.
- Podemos parar - afirmou Elara - Não creio que se arrisquem a vir até tão longe.
- Concordo. - anuiu Gälart - Já estamos muito perto dos nossos territórios.
- Nunca pensei ver-te num campo de batalha. - afirmou Elara, sorrindo - Mesmo que fosse a fugir...
- Posso dizer o mesmo - afirmou o primo - Mas, ainda bem. Obrigado, salvaste-me a vida.
Elara encostou-se ao homem e num movimento rápido tirou uma adaga do bolso da sua saia e encostou-a à garganta dele.
- Não me agradeças - sorriu a princesa - Sabes, meu primo, odiar-te seria razão suficiente para acabar contigo. Mas, contenta-te, não é a única. Nem tu, nem o meu querido irmão, nem a minha mãe, ninguém vai impedir que chegue ao trono.
- Para que procuravas então o teu irmão? - questionou o primo não acreditando no que estava a acontecer - Porquê? E porque me salvaste se me queres matar?
- Procuro o meu irmão para garantir que morra! - exclamou Elara - E salvei-te porque ninguém me ia tirar este pequeno prazer.
Com um movimento rápido cortou a garganta de Gälart e abandonou o local deixando-o agozinar até à morte.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Capítulo V (Parte II)

Quando, junto com Mordechai, Amara chegou ao local onde, acompanhada por alguns soldados, Delenia vigiava o seu prisioneiro, um breve sorriso aflorou aos seus lábios. Como que inconscientemente, abrandou o passo, ao ver que, enquanto alguns dos companheiros tentavam afastar o prisioneiro para o casebre, já devidamente preparado para o receber, o príncipe insistia na sua imobilidade, mantendo com a sua captora um diálogo deveras… interessante.
- Traíste-me, Delenia! - acusava Adhemar - Porquê?
- Traí-te? – replicou esta – Devo-te, porventura, algum tipo de fidelidade? O que eu fiz foi salvar a tua vida miserável, em vez de cumprir as minhas ordens. Não estavas à espera que te deixasse simplesmente fugir, estavas?
- Enganaste-me… - murmurou ele – Onde estamos? Onde me trouxeste?
Nesse momento, Amara interrompeu-os, aproximando-se, triunfante, enquanto respondia à pergunta do prisioneiro.
- Varin. – disse – Pequena povoação na fronteira de Agaloth. Sede e ponto de reunião de todos aqueles que, como eu, foram condenados pela tirania da tua linhagem e que têm pelo nome de Raven o mesmo ódio que eu sinto.
Adhemar estremeceu.
- Quem és? – perguntou, invadido por uma estranha sensação de familiaridade – Eu… Eu conheço-te.
- Mas claro! – replicou Amara, com um sorriso gélido – Claro que me conheces. Antes de me destruir a vida, o meu irmão tinha planos para ti. Queria que eu me casasse contigo, lembras-te?
- Calana Westraven... – murmurou o príncipe, petrificado.
- Sim. – concordou ela – Calana Westraven. Mas aqui não. Aqui, sou a senhora dos condenados e o meu nome é Amara Morningstar. E a partir deste momento, até que eu tome uma decisão sobre ti, és meu prisioneiro.
Lentamente, Amara aproximou-se, desembainhando um pequeno punhal. Depois, com uma precisão quase milimétrica, encostou a lâmina à garganta do príncipe, rasgando superficialmente a pele, de onde uma pequena gota de sangue brotou.
- Vamos ver as coisas da forma como elas são. – prosseguiu, fixando nos olhos de Adhemar uma expressão transbordante de ódio – Pesasse apenas a minha vontade e matar-te-ia agora a mesmo. Ocorre-me, contudo, que possa haver em Vareil quem saiba que ainda vives e seguramente virão à tua procura. Não posso correr o risco de desperdiçar um trunfo tão precioso. Portanto, de momento, tens duas hipóteses. Submetes-te e eu deixo-te viver por mais alguns dias… Devidamente vigiado e manietado, claro… Não creio que gostes de ser meu hóspede, mas é o que há. Esboça o mais pequeno gesto de recusa e juro-te que morres agora mesmo. E não vou ser rápida nem piedosa, Raven.
Adhemar deixou escapar dos lábios um leve sopro de ar. Depois, deixou que a tensão do seu corpo diminuísse, como se em resignação.
- Muito bem, principezinho. – observou Amara, sorrindo. Depois, voltando-se para os seus homens, ordenou:
- Provavelmente terá sido seguido. Os Raven dispõem de meios suficientes para encontrar o rasto de uma fuga apressada. Alguém virá e encontrar-nos-á. Mordechai… - disse, fitando o seu amigo – Divide em quatro grupos os soldados que estiverem prontos para lutar e tratai de vigiar as fronteiras de Varin. Alguns de vós encontrarão o inimigo… Que não haja misericórdia. Eles também não a teriam.
Mordechai assentiu, afastando-se. Entretanto, também os soldados que acompanhavam Amara tinham voltado a agarrar o corpo de Adhemar que, agora sem resistência, se deixava conduzir para longe daquela mulher do passado, a mulher que há muito julgava morta, mas que, em breve, seria a sua morte.
- Delenia. – disse Amara, enquanto os via afastar-se – Não sei porque o trouxeste até mim. Não vou sequer perguntar-te porque o salvaste, mas não sou ingénua ao ponto de não perceber que sentes por ele algo bem diferente do ódio. Vieste até nós, pelo que presumo que a tua honra falou mais alto. Mas considera isto como um aviso e um conselho… Se alguma vez puseres esse tipo de emoções acima da causa que defendemos, é melhor que partas para longe de nós, antes de nos traíres. Não quero ser eu a erguer a mão contra ti… Mas, se me obrigares a isso, não duvides que o farei.
- Eu trouxe-o. – replicou Delenia – E também não sei porquê, mas não o pude deixar morrer ali. Mas trouxe-to. É teu. Não vou fazer nada contra ti.
- Contra nós, Delenia. – corrigiu a líder – Contra nós. Existe nesta causa uma força muito mais importante que eu. A justiça.
Delenia assentiu.
- Sim… - concordou, pensativa – A justiça…
“Mas justiça para quem?”, acrescentou, em pensamento, enquanto a imagem do príncipe, acusando-a de traição, assomava aos seus pensamentos.

terça-feira, 24 de março de 2009

Capitulo V (Parte I)

A noite apertava. O grupo liderado por Lydro acelerou o passo. Era demasiado importante recuperar o príncipe ainda naquela noite.
- Mal vejo onde coloco os meus pés. Seria melhor voltarmos para trás enquanto não é tarde demais. – sugeriu Cäal.
- Se quiseres que a rainha te corte a cabeça…. – suspirou Gälart , também fatigado.
- Mas, será possível que ainda tenhas esperança de encontrar o que quer que seja? – questionou Cäal.
Um possível novo confronto entre os dois foi interrompido quando um corvo começou a sobrevoar o grupo aos círculos.
- Sinal de morte! – exclamou Lydro. – Devemos voltar imediatamente.
- Perdoa a minha insensatez, – sorriu o primo do príncipe – mas há um corvo que nos espera bem pior que aquele que se encontra por cima de nós. Um corvo que não é apenas prenúncio de morte. É a própria morte! Desejais, então, voltar? Pois, assim o seja. Voltai. Eu fico. Só me atrevo a colocar os pés no castelo na companhia do meu primo.
- Insignificante! – exclamou Cäal, furioso - Não durarás cinco minutos sozinho na floresta.
- A minha morte será menos dolorosa. – afirmou Gälart – Somente não aposto moedas de ouro pois não precisaremos delas no inferno que nos espera.
Uma sombra movia-se entre os arbustos, assistindo à confusão que se instalara no meio do grupo. Os cabelos negros desalinhados e o olhar cruel e corajoso denunciavam Elara. O corvo guiou-a até ao grupo de Gälart. Por acidente? Ou propositadamente? Será que Ofélia estava a planear algo? A princesa decidiu permanecer escondida. Apesar da sua impaciência com a demora numa tomada de decisão, queria aproveitar-se de não ter dado nas vistas. Seguiria o grupo. Afinal, procuravam o mesmo que ela.
O corvo abandonou o local, mas não sem antes passar perto da princesa, Elara olhou para o animal, que não fez qualquer barulho, limitando-se a bater as asas aceleradamente. Naqueles segundos o coração de Elara bateu mais forte. Um movimento brusco ou uma palavra tê-la-iam denunciado. O corvo desapareceu e ela suspirou.

Quando quase toda a gente tinha dificuldades em caminhar com uma escuridão tão intensa, era quando Ofélia se deslocava melhor. A noite era o seu dia. Naquele momento entretinha-se a alimentar os corvos . Sorria. Não faltava muito tempo para o seu mensageiro chegar. Acabou de dar comida aos seus animais de estimação, sentou-se e pegou num pequeno saco castanho. Algo se mexia lá dentro. Ofélia dava gargalhadas.
- Gostavas que te soltasse para sentires a liberdade? Não há liberdade. Ninguém a tem. A vida rouba-nos.
O sorriso desvaneceu. Apertou o saco contra o chão e como uma faca fez vários cortes. De seguida, abriu o saco e juntou os pedaços da rã que tinha acabado de assassinar.
- Ninguém tem esse direito. – afirmou pegando num dos pedaços e comendo – Ninguém….

quinta-feira, 19 de março de 2009

Capítulo IV (Parte VI)

Nunca como naquele momento a liderança lhe pesara sobre os ombros. Sabia que a sua missão poderia ter sido um fracasso muito mais considerável, mas quem poderia explicar isso à família do que morrera, segundo sabia, nos hediondos abismos de uma profunda dor?
No silêncio da noite tardia, os pensamentos de Amara pareciam ser um grito dentro do seu coração, enquanto, lentamente, caminhava em direcção à pequena casa que fora o refúgio de Durun, mas que, agora, apenas a sua ansiosa irmã ocupava. As suas palavras destruiriam a esperança que restava àquele débil coração, mas era o seu dever comunicá-las em pessoa. Para isso a haviam nomeado senhora dos exilados, e líder daqueles que ansiavam por uma reparação pelos crimes contra eles cometidos pela família reinante de Lithian. Para que fosse o rosto e a mente das suas responsabilidades a haviam elevado mais alto que todos eles, quando, no momento que chegara, não era senão mais uma entre os exilados, ainda que lhe corresse nas veias o sangue mais próximo à realeza.
Um leve suspiro fugiu-lhe dos lábios, ao encontrar com o olhar a pequena casa. Através da janela, podia ver a trémula luz de uma vela, brincando com as sombras como se delas fosse parte. Depois, viu a sombra da jovem que, em silêncio, esperava que as horas passassem e, forçando-se a cumprir com a que era, afinal, a sua missão, aproximou-se e bateu à porta.

Silencioso como a sombra das suas memórias, Mordechai vigiava, junto à entrada da sua pequena corte de exilados. Não acreditava que, por entre o caos que se instalara na capital de Lithian, as forças dos Raven pensassem sequer em avançar contra o seu pequeno reduto, mas, ainda assim, havia algo nos seus pensamentos que lhe dizia que devia velar, pois algo de importante viria ao seu encontro.
Subitamente, a noite foi agitada pelo som de passos que se aproximavam e, imperceptivelmente, os homens que acompanhavam Mordechai na sua vigília, aproximaram-se deles, prontos para agir da forma que se revelasse necessária. A sua primeira reacção, contudo, foi de surpresa, ao ver Delenia surgir de entre as sombras, acompanhada pela figura de um jovem, pouco mais que um rapaz, que todos eles conheciam demasiado bem.
- Delenia! – exclamou Mordechai, surpreendido – Será possível que…?
- Não digas nada. – interrompeu-o ela – A oportunidade surgiu e não a podia desperdiçar. De todas as formas, a decisão não é nossa, pois não?
Mordechai assentiu.
- Encarregar-te-ás de o vigiar? – perguntou – A Amara precisa de ser avisada o mais rápido possível.
- Claro, meu lorde. – concordou ela, com um sorriso leve – Não te preocupes. Entre mim e os teus companheiros, arranjaremos um lugar adequado para o nosso… visitante.

Os olhos de Rienna tinham o dom da profecia, uma suave antecipação, como se, em silêncio, se resignasse ao que, ainda que não o admitisse, já conhecesse como real.
- Diz-me, Amara. – pediu ela, ao ver diante de si o rosto consternado da sua líder – Os meus pressentimentos são reais? O meu irmão está morto?
Amara vacilou, surpreendida por um tão profundo estoicismo.
- Lamento, Rienna, - acabou por replicar – mas é verdade. Durun morreu.
Rienna suspirou.
- Surpreender-te-ia se te dissesse que já o pressentia? – perguntou – Que sentia o fracasso iminente quando se despediu de mim?
- Ninguém o poderia imaginar. – respondeu Amara – Se soubesse que tudo terminaria assim, nunca teria permitido que ele partisse… Mas tu sabes que ele nunca me perdoaria se o tivesse deixado para trás, e… Todos nós acreditávamos que seriam bem sucedidos.
- Sim. – assentiu Rienna – Eu sei. Suponho que tenho de me resignar à verdade dos factos, mas…
- Não. – interrompeu Amara – Não tens de te resignar a nada, quando tens um culpado diante de ti. Se há algo dentro de ti que precise de sair, então liberta-o. Grita, chora, insulta-me… Faz o que quiseres. Não há nada que precises de esconder num momento desses.
Silenciosas, as lágrimas brotaram no rosto de Rienna e, imperceptivelmente, Amara preparou-se para a explosão que, seguramente, surgiria, que, sem dúvida alguma, merecia. O que aconteceu, contudo, não foi um desabrochar de cólera, mas apenas a floração de uma tristeza infinita, reflectida na intensidade desesperada com que a jovem Rienna se lançou nos braços da mensageira da morte, colocando todas as suas forças numa vã busca de consolo para ambas.
- Não te culpo… – murmurou Rienna, entre lágrimas – Não a ti. Aos Raven… Às mãos que provocaram a morte do meu irmão. Sinto que foram eles… e tu sabes, não sabes? E contar-me-ás tudo, eu sei… Mas agora não… Ainda não.
- Ainda não… - concordou Amara.

Quando as duas mulheres se soltaram do abraço, os olhos de Amara puderam encontrar, enfim, a figura de Mordechai que, silenciosamente esperava.
- O que aconteceu? – perguntou ela, notando a urgência nos olhos do amigo.
- Julgo – respondeu este – que quererás ver com os teus próprios olhos. Acaba de chegar a mais inesperada das visitas.

domingo, 15 de março de 2009

Capitulo IV - (Parte V)

Os seus dedos enrugados tamborilavam na madeira gasta dos braços do trono. Era o mais tenebroso ponto da noite e os olhos afadigados vagueavam pela sala taciturna e despejada. A sua atenção focou-se na seta ensanguentada que estava diante de si. Levantou-se vagarosamente e encaminhou-se para o meio da sala, onde a flecha repousava num lençol branco manchado de sangue. Colheu a arma que extinguiu a vida de seu marido e, com ódio, quebrou-a em duas, largando-as de imediato.
- Não sei quem és! – exclamou a rainha – Mas garanto-te que te arrependerás de ter nascido! Amaldiçoarás o ventre da tua mãe por te brotar! – espezinhou com violência as dois bocados de flecha – Gota por gota…a tua vida extinguir-se-à! Prometo-te, meu marido! Depositarei a cabeça do verme que te eliminou em cima do teu túmulo!

Os passos mergulhados no território lamacento abrandaram. A noite adensava e escondia os já poucos vestígios do possível percurso do príncipe. Galärt usou o braço para limpar o suor que já se manifestava no rosto, originado por algumas horas de buscas. Que fossem alguns minutos, que o desconforto seria semelhante! Os seus terrenos eram os lençóis do reino e não a sombria floresta que as últimas chuvas haviam tornado em pântano.
O primeiro erro da rainha tinha sido a demora em nomear um grupo de busca. O segundo colocar o galã a capitanear esse mesmo grupo. Porém, o forçado capitão sabia que era da conveniência da rainha ter Rómulo e os melhores soldados na sua guarda, não fosse ocorrer um novo ataque. “Carne fraca dispensável…” pensou o poeta, sorrindo desconfortavelmente.
Apesar da surpreendente e absurda nomeação feita pela rainha, o primo do príncipe fez questão de esclarecer o seu papel. Assim que chegaram à floresta, deu o controlo das operações a Lydro, o melhor soldado do grupo e afirmou que ajudaria no que fosse necessário, mas que estava mais habituado a socorrer-se da sua inteligência do que propriamente dos seus punhos. Depois, pensando para si mesmo, recordou-se que em termos de planos de fuga não deveria ter rival, pois já tinha encontrado na sua vida inúmeros maridos furiosos que cobiçavam cortar a cabeça ao amante de suas mulheres. Porém, ninguém podia precisar quem enlouquecia as mulheres provocando o seu adultério, primeiro, porque muitas nunca tinham sido apanhadas, depois, porque as que eram apanhadas nunca acusavam Galärt. Preferiam apontar o dedo para outros supostos culpados provocando sempre situações embaraçosas em casas de homens de família que nunca tinham traído as esposas nem em pensamentos.
Para má fortuna de Galärt, um dos poucos que sempre desconfiou da vida boémia do artista encontrava-se integrado naquele pequeno batalhão. Cäal, soldado do reino, tinha trinta anos de casado quando um dia chegou a casa mais cedo e deparou com a sua mulher em trajes pouco dignos e as cortinas da janela de seu quarto ainda a ondularem.
- Não percebi o que fazes aqui. – começou Cäal – vais cutucar os inimigos com uma pena ou vais escrever-lhes um livro?
- Um livro é uma arma mais poderosa do que aquilo que possas imaginar. Mas a força bruta não te permite ir muito além. – sorriu Galärt – Aqui perante todos afirmei que nunca peguei em uma arma. Porém, há certas coisas que requerem o uso da inteligência. Dos miolos. Assim, contrabalançamos a tua força física com o meu cérebro.
Cäal tentou socar o provocador, porém Lydro intrometeu-se.
- Não é a hora nem o lugar para as vossas desavenças – suspirou – sejam quais forem.
Cäal afastou-se, contrariado, enquanto Galärt foi para o lado contrário sorrindo provocatoriamente. Lydro dirigiu-se ao primeiro e pediu que se acalmasse.
- Neste momento não podemos estar uns contra os outros. A noite aperta e se não encontrarmos o príncipe a rainha corta-nos a cabeça.
Recomeçaram a caminhar e Lydro aproximou-se de novo do companheiro.
- Não penses que não sei o que se passa. Eu sei muito bem o que ele faz. – afirmou, sussurrando – Assim que encontrarmos o príncipe cuidaremos deste verme, morto por uma bala inimiga ou soterrado numa vala perdida, juro-te que este miserável não voltará a colocar os seus pés em Lithian.

A imponente mansão dos Razza não tentava sequer disfarçar o sucesso do patriarca da família. Objectos de luxo, utensílios importados, modas que ainda eram miragens no reino, tudo fazia parte da casa de Arus Razza.
Deitada num dos diversos largos sofás estendidos pela sala de convívio, Isís controlava o seu pranto em postura firme e silenciosa, surpreendendo até o próprio pai, que ainda recordava o rebento que, na sua meninice, chorara a morte da mãe colhida por uma doença que tinha tanto de absurdo como de fatídico. Estava, sem dúvida, diferente. Tinham passado dez anos e o amadurecimento da rapariga parecia também ter despertado uma camada polar nos seus sentimentos perante a dor da perda. O seu noivo tinha desaparecido e Isís não pediu um abraço ao seu pai nem qualquer tipo de reconforto. Apenas um chá e submergiu no paladar da substância calmante sem pronunciar outra palavra que fosse.
Arus Razza sentiu-se culpado. O que para ele e para o rei se tratava de apenas um negócio com vantagens para as duas famílias, pois o facto de entrar na família real abria-lhe as portas dos poucos mercados que ainda não tinha explorado, e o rei teria nas economias grandiosas da família Razza um enorme desafogo, significava muito mais para Isís. “Um rei pobre…como é possível?” Os pensamentos de Arus deixaram a família real e voltaram a concentrar-se na filha. Ela sentia algo intenso pelo príncipe. “Lado negro dos negócios”. Mas, afinal quem teria levado o príncipe?
O pai de Isís encaminhou-se para seu quarto e abriu a porta, ainda absorto em pensamentos. Porém tudo se desvaneceu quando olhou para o tecto do seu quarto e viu um gato aberto a meio, pendurado no candelabro, esvaindo-se em sangue e pintando na parede a sua própria imagem degolado…

quinta-feira, 12 de março de 2009

Capítulo IV (Parte IV)

Quando pararam, as fogueiras de Varin eram já visíveis algures na distância. Não seria, contudo, perante a obscuridade da noite que Soran Fadenbran se apresentaria diante dos olhos da sua senhora, segurando nas mãos a vingança que ela tanto desejava. Não… Seria o dia a assistir ao seu triunfo pessoal, para que ele pudesse ver, como na estrela da manhã, o brilho e o fogo que podiam arder nos olhos de Amara Morningstar.
Antes, contudo, tinha ainda uma outra espécie de vingança que concretizar. Criara uma ilusão em torno do seu prisioneiro, uma imagem que, certamente, o teria atormentado ao longo de toda a viagem. Agora, era momento de lhe revelar a verdade, para instalar no seu coração uma negrura ainda maior, capaz de lhe inspirar o mais profundo temor, e de o preparar devidamente para o que o esperava nas mãos da sua esquecida irmã.
Os débeis gemidos de um homem que se debatia, ainda que em vão, rasgaram o silêncio, levando a que um sorriso aflorasse aos lábios do lorde. Depois, lentamente, puxou o capuz para cima, ocultando o rosto, e esperou que os seus companheiros chegassem.

Ao encontrar-se diante da sinistra figura, Caledon tremeu. Não conseguia detectar o rosto por baixo do capuz, mas a sua severa imponência, claramente reveladora de um líder incontestável, indicava-lhe que aquela era a mente por detrás do seu rapto e que o seu destino poderia muito bem encontrar o seu fim no rumorejante ambiente daquela clareira. Um turbilhão de perguntas agitavam os seus pensamentos, ávidos de uma resposta que lhe permitisse sobreviver, mas a aparente tranquilidade do seu captor silenciava-lhe as palavras com o sopro de um pavor que o petrificava.
- Conheces-me, Caledon Westraven? – perguntou a voz que, por debaixo do capuz, lhe parecia estranhamente familiar, mas que, distorcida pelo medo, lhe parecia incompreensível.
A pergunta pareceu dar-lhe coragem para libertar a voz.
- Eu… - balbuciou – Não… Não sei quem é. O que quer de mim?
A voz riu.
- Tudo o que quero de ti, já o tenho. A tua miserável vida nas minhas mãos.
Lentamente, o vulto deixou que o capuz caísse, revelando o seu rosto. Nesse momento, um gemido de horror escapou dos lábios do prisioneiro, ao reconhecer a face do homem que julgara morto, ao compreender o significado do que lhe sucedia.
- Fadenbran! – exclamou, incapaz de raciocinar – Porquê? Que utilidade… Para que me quer? O rei está morto, e eu… Eu não sou ninguém!
- Que me importa o reino, Westraven? – interrompeu Soran – O que eu quero és tu. Não percebes? Não te lembras do que me fizeste? Quero vingança, criatura indigna! E, finalmente, tê-la-ei.
Nesse momento, Caledon compreendeu o ódio do outro lorde, um rancor nunca proferido, mas que crescera ao longo do tempo, desde o dia em que, quando a sua família planeava um casamento entre a sua irmã e Soran Fadenbran, ele decidira intervir, alegando que o noivo não estava à altura dos familiares mais próximos da dinastia reinante.
- É por causa dela? – perguntou, chocado – Porquê? Porquê agora? Tanto tempo depois de ela ter sido exilada… Calana estará certamente morta… Condenará a sua reputação, a sua posição em nome do ódio?
Soran riu.
- Como és ridículo… - observou, com um esgar de desprezo – Tentas argumentar comigo, quando o que queres fazer é implorar pela misericórdia… Mesmo nesta situação, continuas a ser uma besta arrogante.
Caledon abriu a boca, mas não conseguiu falar. Não, quando via que uma palavra errada podia custar-lhe a vida.
- Sim, é por ela. – prosseguiu Soran – E, contudo, a verdade não se aproxima sequer daquilo que imaginas. Mas não serei eu a revelar-ta. Ainda não…
O prisioneiro estremeceu.
- Suponho que é altura de te devolver ao teu cubículo. – declarou Soran – Aprecia a tua última noite. É possível que, amanhã, já não tenhas uma vida para apreciar.

domingo, 1 de março de 2009

Capitulo IV (Parte III)

A noite encobria a viagem de Elara. A conversa não poderia esperar. As dúvidas seriam dissipadas. A bruxa teria que se explicar. O cavalo que transportava a princesa era quem pagava a sua fúria, sendo castigado cada vez que desacelerava um pouco.

Na caverna de Luath um corvo voava à volta da bruxa Ofélia, quando, subitamente, queimou uma das asas na fogueira. Ofélia pegou no corvo e deitou-o num pedaço de madeira. Depois pegou numa estaca e cravou-a no pássaro, extinguindo a vida do pequeno animal.

- Porque me visitas a esta hora? – questionou a bruxa, sem olhar para a entrada da caverna onde Elara surgia.
- Bem sabes porque vim. Gosto das coisas directas e sem rodeios, como já tens conhecimento.
- É um bom hábito. – sorriu Ofélia.
- Então, poupa-nos às duas. Diz-me o que preciso saber.
- Porque não te disse que existiriam outros? Porque não te preveni? A resposta é demasiado simples.
- E afinal, qual é? – a princesa fez um gesto de desprezo – Lembra-te que estás a arriscar o teu ouro.
- Eu preveni-te de que o reino é vasto e que poderia existir alguma falha. Na verdade, disse tudo o que necessitavas saber.
- Mas sabes quem são os intrusos? Porque não me disseste? – perguntou Elara, exaltada – O facto de o príncipe ainda estar vivo atrasará o meu assalto ao trono e enquanto não estiver no lugar onde pertenço não há recompensa! Não há moedas de ouro!
- As coisas não são tão lineares. Eu sabia que havia perigos, mas eram apenas sombras na minha cabeça. Não conseguia revelar-te quem eram os inimigos, – fez uma pausa – mesmo que quisesse.
- Agora já deves saber! Quem levou o meu irmão? – interrogou a princesa.
- Como queres que te ajude se não queres cumprir a tua palavra? Se dizes não me dar o ouro?
- O plano era chegar ao trono! E isso não foi cumprido!
- Dá-me metade do prometido agora e a outra metade quando estiveres no trono.
- Diz-me onde está o príncipe e eu dou-te metade do prometido.
Ofélia sorriu.
- Dá-me metade do que me prometeste e eu digo-te onde está o príncipe.
- Tudo bem. Dar-te-ei as moedas. Vim prevenida.
- Ambas sabemos como as nossas mentes funcionam. É perfeito. Metade do caminho está logo feito.
- O príncipe acaba de chegar a um certo lugar na floresta. Sugiro que vás ou envies alguém…antes que seja tarde demais.
- Será morto? Mas isso seria perfeito.
- Talvez…Talvez não. O meu conselho é que vás.
- E como sei onde o encontrar?
- D’aherk vitis.
Um corvo entrou na gruta e pousou no braço da bruxa.
- Ele sabe o caminho. Segue-o.
A princesa sorriu.
- Parto agora, então. Bendito o teu amor pelo ouro.
A bruxa não disse nenhuma palavra enquanto a princesa saia da caverna guiada pelo corvo. “Amor”, que palavra tão longínqua… Que sentimento era esse? Já não se recordava. Fazia já muito tempo que o haviam roubado…

Naquele dia de Outono quando as primeiras chuvas cerravam o reino e as folhas começavam a cair perante o amanhecer surgiu alguém que tinha apenas um propósito. Ofélia tinha saído para comprar verduras e aproveitando-se disso um homem de barba por fazer e aparentes trinta anos e dois amigos invadiram a casa da mesma, onde se encontrava o marido de quem ela estava grávida. Quando voltou para casa deixou cair o saco de verduras no meio da lama e levou as mãos à boca. A casa ardia. Tudo ardia. Lá fora escrito a sangue “Tu serás a próxima, bruxa!”. E desde aí tudo mudou. O amor, a caverna, apenas o ouro interessava.
Ofélia cravou as suas unhas nas suas mãos fazendo-as sangrar.
- Tu pagarás! Arus Razza…tu pagarás!

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Capítulo IV (Parte II)

Divagava com o olhar por todas as sombras do espaço, como se detrás de uma coluna ou escondidos numa esquina, pudesse haver uns olhos que o espiassem. Sentia com toda a força a tensão que se instalara no palácio real e, ainda que tivesse tratado de eliminar todas as provas que o podiam indiciar, não deixava de notar que a rainha lhe dirigia demasiada atenção. Fora um alívio para si ver que Durun morrera com os seus segredos, mas isso não significava que estivesse salvo. E que razões poderiam explicar a obsessão de Alessandra pela sua pessoa, mandando-o chamar a qualquer hora, com a escusa de supervisionar as investigações no respeitante à morte do seu marido e ao desaparecimento do seu filho?
Inconscientemente, Lothian apressou o passo. Parecia que os corredores do palácio se haviam alongado interminavelmente e que horas haviam já decorrido desde que deixara os seus aposentos em direcção à torre dos mensageiros. Escondido entre as vestes, levava a derradeira prova da sua cumplicidade na conspiração e tudo o que desejava era livrar-se dela o mais rápido possível. A partir daí, que Amara decidisse o que queria fazer. Sabia, contudo, que caso fosse encontrado com aquele documento em sua posse, seria desmascarado e, sem dúvida alguma, submetido ao mesmo hediondo destino que Durun.
- Boas noites, conselheiro. – cumprimentou uma voz atrás de si, levando a que o seu corpo se retesasse de pavor. Ao voltar-se para fitar o rosto do seu interlocutor, contudo, o seu nervosismo transformou-se numa máscara de arrogância, ao ver que se tratava de um simples soldado, um de entre os muitos que patrulhavam o palácio.
- Boas noites, soldado. – respondeu – Precisas de algo?
- Não, senhor. – replicou o soldado – Pretendia apenas certificar-me de que era o conselheiro e não um estranho.
- Fizeste bem. – observou Lothian – Nesse caso, prosseguirei o meu caminho.
O soldado assentiu e, cumprimentando-o com um rígido gesto militar, seguiu com a sua ronda.
Poucos passos depois, contudo, ao alcançar, enfim, a escadaria da torre, a gélida máscara do conselheiro quebrava-se sob o temor que ocultava e um leve suspiro saiu dos seus lábios, expressão do alívio que subitamente o invadira.
- Ainda vais ser a minha morte, - murmurou – Amara Morningstar.

Quando o corvo chegou ao seu destino, Amara fitava as estrelas, buscando no manto dos céus a serenidade que não conseguia encontrar no seu coração. Mirian não conseguira ver com exactidão o que ocorrera em Lithian. Era demasiado jovem para controlar o seu poder de forma eficiente. Dissera-lhe, contudo, mais que o suficiente para que os seus pensamentos explodissem numa tempestade de nervosismo. Haviam falhado. Quantos teriam morrido, pois? Quantos voltariam para si? E Soran? Estaria ele…?
O som do crocitar do mensageiro, momentos antes de pousar no seu ombro, despertou-a das suas divagações. Lentamente, estendeu a mão para a ave, removendo-lhe da pata o pequeno embrulho que escondia a mensagem. Depois, enquanto o corvo voltava aos céus de onde viera, Amara fixou o seu olhar na letra do conselheiro Lothian e lágrimas de dor e de alívio inundaram os seus olhos.
Sabia agora o essencial do que sucedera, ainda que muito tivesse ficado por explicar, e ainda que o derradeiro resultado tivesse sido uma derrota, as consequências não haviam sido tão graves como as que a sua mente imaginara. Segundo a informação que tinha diante de si, Amon Raven, fora morto por uma flecha desconhecida, e não por um dos seus, mas, ainda assim, morrera. O caos que se instalara, contudo, impedira que os seus agentes cumprissem com a sua missão. Sabia que Durun fora capturado e torturado até à morte, mas que nada dissera, e, ainda que sentisse alguma suspeita quanto à sua pessoa, Lothian mantinha o seu posto na corte. De Avalen e Delenia, nada sabia, excepto que vira esta última, pela última vez, perigosamente próxima do príncipe Adhemar, que também desaparecera sem deixar rasto. Quanto a Soran Fadenbran, vira-o desaparecer entre a multidão na companhia de Caledon Westraven que, desde esse momento, não voltara a ser vislumbrado.
Um leve sorriso ganhou vida nos lábios de Amara. O rei estava morto e Adhemar e Caledon desaparecidos. Dos seus, apenas um morrera, e, ainda que lamentasse genuinamente essa morte, era, sem dúvida, um resultado um pouco melhor que o que esperara após a visão de Mirian. Delenia e Avalen… Seguramente voltariam para Varin, caso estivessem bem, e Soran… Não deixaria de voltar para os seus braços. Previa até que o lorde tivesse sido o único a cumprir a sua missão com sucesso. Talvez em breve tivesse o seu odiado irmão à sua mercê. Mas uma pergunta continuava a perturbar o seu pensamento. O que teria acontecido a Adhemar?

 

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