segunda-feira, 27 de abril de 2009

Capítulo VI (Parte II)

- Bons dias, senhores. – cumprimentou Amara, entrando na divisão onde, em silêncio, os seus principais aliados a esperavam. Havia uma estranha tranquilidade no seu rosto e, pela primeira vez em muito tempo, havia nos seus lábios o esboço do que parecia ser um sorriso genuíno.
- Lorde Fadenbran. – prosseguiu ela, usando os títulos formais, enquanto, com o olhar percorria, um a um, os rostos dos seus companheiros – Lorde Gray. Magister.
Em resposta à sua saudação, Soran e Andros assentiram. Mordechai replicou:
- Senhora Morningstar.
Amara sorriu, sentando-se graciosamente na cadeira que fora deixada livre para si.
- Não fomos bem sucedidos – começou – na nossa conspiração. Forças que desconhecemos impediram os nossos gestos. Ainda assim, não podemos dizer que toda a nossa luta foi em vão. Lamento, evidentemente, a morte de um dos nossos melhores companheiros e não creio que o que conquistámos justifique a sua perda, mas a verdade é que não o podemos recuperar. Resta-nos agradecer pelo que conseguimos.
- O rei está morto. – observou Soran – E, apesar dos imprevistos, consegui trazer-te um dos teus inimigos. Diria que não é pouco, mas…
- Mas há mais, meu caro. – interrompeu Amara – Com toda a agitação da noite passada, esqueci-me de te referir esse facto. Temos o príncipe herdeiro na nossa posse.
Soran vacilou.
- Então, a Delenia foi bem sucedida? – questionou – Notei o seu desaparecimento, mas nunca pensei...
- Sim. – assentiu Andros – Se bem que eu preferia que ela tivesse morto o príncipe. Todos sabemos que a rainha não se poupará a esforços para o recuperar.
- Deveras. – concordou Amara – E é por isso mesmo que a vida do principezinho é preciosa. Creio que nos conquistará um exército.
Mordechai fitou-a, surpreendido.
- O que tens em mente? – perguntou.
Amara suspirou.
- Não o posso revelar, ainda. – disse – Na verdade, espero não ter de envolver o corvo na negociação. Custar-me-ia recusar ao direito que tenho sobre a sua vida. Mas o que tiver de ser, será. Precisamos de aliados, caríssimo, e de aliados poderosos. E quem melhor que o reino que tão, benevolentemente, tem ignorado a nossa conspiradora presença?
Soran sorriu.
- Vais propor aliança a Agaloth?
- É esse o meu plano. – assentiu Amara – Afinal, todos nós sabemos o quanto o rei odeia os senhores de Lithian. E quando os Raven tiverem dito adeus à vida… Bem, eu tenho um nome que me garante bastantes privilégios. Tenho muito a oferecer ao senhor de Agaloth.
Andros esboçou um sorriso enigmático. Não era só a opção mais acertada, era também a rápida acção de que precisavam. A capital do reino ficava nas proximidades, uma vez que, de todos os reinos que faziam fronteira com Agaloth, Lithian era o único que, apesar de todos os ódios conhecidos e por conhecer, nunca estivera em guerra com o reino vizinho.
- E quando vais fazer isso? – perguntou.
- Agora mesmo. – respondeu Amara – Mordechai, meu amigo, preciso dos teus serviços.
- Ordena, caríssima, - assentiu o homem – e será como quiseres.
- Preciso que partas para a capital. Levarás contigo o sinal das minhas armas e, em meu nome, pedirás audiência ao rei. Dir-lhe-ás que tenho comigo toda a urgência dos tempos. E dir-lhe-ás que vais em nome de Calana Westraven.

- Tens a certeza do que estás a fazer? – perguntou Soran, quando ficaram a sós.
No silêncio entre ambos os seus corpos, as suas almas pareciam clamar uma pela outra, mas a mordaça que pairava sobre os planos de Amara parecia revelar aos olhos do lorde uma mulher diferente, uma rainha que, apesar de toda a sua serena beleza, não deixava de ser um enigma para os seus sentimentos.
- Sabes que sim, meu querido. – respondeu Amara, aproximando-se e, nesse momento, Soran voltou a ver a mulher que amava desde longos anos – Sei que julgas que arrisco demasiado, - prosseguiu – ao revelar-me abertamente a um homem que, com uma simples ordem, pode lançar sobre nós uma força imensa o suficiente para nos aniquilar em poucos momentos. Mas também sabes que Lithian dispõe do mesmo poder e, se suspeitam de que o príncipe veio nesta direcção…
Soran assentiu.
- Não questiono as tuas decisões. – disse – Apenas… Apenas tenho medo de te perder.
Nesse momento, os lábios de Amara fundiram-se aos seus num beijo apaixonado, longo e voluptuoso.
- Nunca me perderás. – murmurou ela, quando os seus lábios se apartaram – Nunca.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Capitulo VI (Parte I)

Um novo dia nasceu. Porém, as nuvens tétricas adiavam a manifestação do sol. Era como se uma força maior desejasse mergulhar aquele princípio do dia no negrume anunciando a cerimónia fúnebre que teria lugar no campo santo Cellios, sítio onde estavam sepultados todos os membros reais de Lithian. Não obstante a hora pouco adiantada, já existiam diversas movimentações para organizar o funeral do rei. Vários homens colocavam em ordem a sala onde sucederia a despedida final. O responsável por tudo seria o padre Ardheus, que se congratulou por mais uma excelente oportunidade de encher os bolsos.
O homem saiu de casa cedo e dirigiu-se para a sala fechada onde já repousava o corpo de Amon. Dois soldados protegiam a porta de entrada. O padre sorriu e deu os bons dias aos dois homens. Estes afastaram-se para permitir a entrada do sacerdote. A porta fechou-se, deixando o padre sozinho com o cadáver. Ardheus sorriu, enquanto tirava um pequeno cantil que carregava escondido no seu paramento. Abriu e deu uma golada forte, limpou os beiços com o seu braço e voltou a sorrir.
- Ó meu amigo! Que fazes aí estendido? Isto aqui é uma bela pinga!
Aproximou-se do corpo inerte e esticou o seu braço colocando a vasilha de vidro em cima dos lábios do rei, tentando que ele bebesse.
- Não queres? – questionou, surpreendido – Olha para isto, estás a deitar tudo para fora. – voltou a beber do cantil – Não te dou mais.
O volume do discurso do padre atraiu a atenção de Elara, que entrou na sala com os dois guardas.
- O que é que se passa aqui? – perguntou Elara incrédula – Bêbado? A esta hora da manhã? Quando vai guiar um funeral de um nobre?
- Também quer? – perguntou Ardheus, amarrando o cantil contra o seu corpo, tentando esconder – É para mim!
- Guardas! Levem-no! Mergulhem-no no rio! – ordenou a princesa – E reza ao teu deus para que saibas nadar! Precisas de água fria para acalmares.
Cada um dos guardas pegou num dos braços do padre e começaram a arrastá-lo da sala.
- Ó minha princesa… – começou o sacerdote – Mais vale um padre bêbado do que uma mulher que pensa que tem o mundo nas suas mãos quando é apenas um títere do destino…
Elara seguiu os sorrisos alucinados do padre, perplexa por aquilo que tinha acabado de ouvir.

No quarto da rainha, Dyniana limpava as mobílias com todo o cuidado para não acordar a sua senhora. Tinha ordens para apenas a despertar quando estivesse tudo pronto para a cerimónia fúnebre. Porém, quando, sem querer, com o seu espanador derrubou uma pequena estátua de madeira os olhos da rainha descerraram-se.
- Perdoe-me, minha rainha, – disse Dyniana – fui uma desastrada.
- Não faz mal. A verdade é que já não me encontrava no meu sono mais profundo. A inquietação que sinto é enorme. Não me permitiria muito mais tempo de sossego.
Alessandra olhou para uma pequena mesa ao lado da sua cama, onde Dyniana tinha por hábito servir-lhe o pequeno-almoço.
- Que papel é este em cima da mesa? – interrogou a rainha – Foste tu que deixaste?
- Não, minha rainha. - respondeu Dyniana, olhando para a mesa, surpresa.
A rainha agarrou o papel e desdobrou-o.
“Rainha! No meio da floresta, na fronteira com o nosso reino, onde os corvos se reúnem e o sol nasce mais devagar estão os seus inimigos! Está o seu filho! Não envie novamente um grupo tão fraco como fez, não subestime tais adversários! Estão mortos! Todos mortos! Se realmente deseja o seu filho de volta organize um grupo com os melhores, só assim ostentará hipóteses.”
Alessandra voltou a dobrar o papel.
- Dyniana – chamou – Procura Rómulo, diz-lhe que esteja na sala do trono dentro de meia hora. É urgente.

- Fria! Fria! Fria! – exclamava Ardheus enquanto tentava sair do rio - Deixem-me sair!
- O que se passava, velho balofo? – questionou um dos guardas – Não gostas de água? É um bela pinga.
- Mergulha a cabeça! – ordenou o guarda que apontava com o seu arco para o padre – É a única maneira de te refrescares.
- A água está gelada! Vou morrer aqui! Deixe-me sair! – apelava o padre.
- Mergulha a cabeça várias vezes e deixamos-te sair. – disse o outro guarda.
- Está bem, está bem. – disse Ardheus conformado.
- Dez vezes! – exclamou o guarda que ameaçava com a arma.
Enquanto o padre mergulhava a cabeça os guardas sorriam e contavam em coro.
- Dez…nove…oito…sete…seis…cinco…quatro….três…dois…dez…
- Como dez? É a última! – gritou Ardheus desesperado.
O guarda atirou, a flecha passou bastante próxima do padre.
- É a última quando nós quisermos. Continua!

- Bom dia, minha rainha. Algo a perturba? – questionou Rómulo, ajoelhando-se perante Alessandra – Em que posso ajudar?
A rainha esticou-lhe o bilhete. O homem leu e olhou para ela perplexo.
- Alguma ideia sobre o facto desse bilhete estar no meu quarto?
- Não, minha rainha. Nenhuma.
- Então, sabes o que quero que faças?
- Que descubra quem foi?
- Obviamente. Foi alguém do interior do castelo. É imperativo descobrir quem entrou nos meus aposentos, quem conseguiu fintar os guardas. Não que eles sejam muito inteligentes, mas são numerosos.
- Mas e o conteúdo do bilhete? – perguntou o guerreiro – Será verdade?
- É muito provável que o seja. O grupo que enviei era apenas carne para canhão. Para ter alguma ideia sobre as forças que enfrentamos. Amanhã organizaremos um grupo para resgatar o príncipe.
- Amanhã pode ser tarde, minha rainha.
- Rómulo – sorriu a rainha – Pensas de facto que iam se dar ao trabalho de raptar o príncipe para o eliminar? Querem um trunfo para defrontar o reino. O que eles deviam saber é que o reino incidirá sobre eles! Será que aquelas pobres almas sabem o que é o inferno?

domingo, 19 de abril de 2009

Capítulo V (Parte VI)

Já estavam cansados de percorrer a escuridão dos bosques quando a súbita percepção de um cheiro fétido denunciou a presença do que há muito procuravam. Estavam já relativamente longe do local onde haviam sepultado os mortos do inimigo e começavam a pensar em desistir da sua busca, mas, guiados pelo fedor que, a cada passo, se tornava mais forte, não demoraram muito a descobrir, percorrido por alguns corvos que dele se alimentavam, o ainda reconhecível cadáver de Gälart.
- Está aqui. – declarou Mordechai, forçando-se a conter um esgar de asco – Não precisamos de prosseguir mais.
- E agora? – perguntou um dos soldados – O que fazemos com ele?
- O mesmo que com os outros. – replicou Mordechai, terminante, apesar de se sentir tão relutante em aproximar-se daquele destroço como qualquer um dos seus companheiros – Não o podemos deixar aqui para ser encontrado.

Amara chegou à praça central de Varin a tempo de ver dois dos seus homens, em tempos escondidos em Lithian, descer de uma das carruagens, trazendo consigo uma figura cuidadosamente manietada, com o rosto totalmente encoberto por um capuz negro. Nesse momento, também, o seu olhar encontrou, descendo da outra carruagem a figura de que há muito esperava notícias, agora também vestido com o negro dos condenados, mas fitando-a com um sorriso triunfante.
- Soran… - murmurou Amara, permitindo-se um sorriso leve.
- Boas noites, minha senhora. – cumprimentou o lorde, curvando-se numa vénia formal. Depois, aproximou-se dela e, com ternura, beijou-a numa das faces.
Os braços dela enroscaram-se no corpo dele.
- Boas noites, meu belo lorde. – respondeu Amara, apertando o corpo dele contra o seu – Meu querido…
Relutante, mas consciente do olhar dos seus fixo em si, Amara libertou-o dos seus braços. Em seguida, com um gesto leve, apontou para o prisioneiro.
- É quem eu penso?
Soran sorriu.
- Ele mesmo.
O rosto de Amara tornou-se gélido.
- Imagino que a tua viagem te tenha fatigado, - disse, compreensiva – mas entenderás que quero tratar desta situação agora mesmo. Se te quiseres retirar, tens a minha permissão.
- Sensibiliza-me a tua preocupação, Amara. – replicou Soran – Mas deves compreender que não perderia isto por nada no mundo.
- Já o imaginava. – replicou ela, com um sorriso. Depois, avançou na direcção do prisioneiro e, indicando, com um gesto, que o deixassem tombar no chão, fitou, apreciativamente, a figura trémula.
- Pergunto-me se sabes – disse, caminhando em redor do prisioneiro – que todos os crimes têm um castigo, ainda que, durante tanto tempo, te tenhas julgado infalível. Pergunto-me se sabes que chegou a hora da expiação.
Um soluço brotou da garganta do prisioneiro, enquanto Amara se baixava, forçando-o a ajoelhar. Depois, lentamente, removeu-lhe o capuz, erguendo-se, depois, altiva, diante dos olhos ainda aturdidos do homem.
- Pergunto-me – disse ela, com um sorriso de gelo – se ainda me reconheces.
Durante alguns momentos, os olhos de Caledon não viram nada, aturdidos pela súbita passagem da escuridão à bruxuleante luz das tochas. Depois, a sua visão encontrou, pálido e espectral, o rosto da sua executora, um rosto que ele próprio expulsara do seu mundo, carregada com o peso das suas mentiras e destinada a morrer na solidão do exílio.
- Calana… - murmurou, incrédulo – Não… Não pode ser… Tu não sobreviverias…
Os lábios da mulher contraíram-se de ira. Lentamente, Amara desembainhou a sua espada, deixando que a lâmina brilhasse sob a luz das chamas ondulantes, como um prenúncio de morte. Uma morte ainda distante, precedida pelos fúnebres vultos do medo e da dor.
- Eu sobrevivi, Caledon. – respondeu ela, aproximando-se, lentamente – Tu não o farás.
A espada desceu, lentamente, como num baile sádico. Como um beijo suave, a lâmina pousou no peito ofegante do antigo lorde, fazendo com que um gemido de pavor brotasse dos seus lábios.
- Por favor… - implorou ele – Por favor, não…
- Nem penses – interrompeu Amara – em implorar por misericórdia. Não quando tu próprio não a tiveste, depois de seres tu o culpado da morte da nossa mãe e de me teres condenado pelos teus crimes. Tu vais morrer, não tenhas a menor dúvida. Mas não vai ser assim tão fácil.
A espada retornou à sua bainha. Depois, silenciosamente, Amara baixou-se, até o seu olhar se encontrar à altura do de Caledon, e, com um sorriso gélido, ela prosseguiu:
- Durante dias e dias, no futuro por vir, tu serás o meu jogo.
Uma violenta bofetada aturdiu o prisioneiro, ainda pendente das palavras da que era, agora, a senhora da sua vida.
- A cada hora, – dizia ela – a cada instante em que a vontade me ditar, eu irei por ti. Tu, que estarás fraco e indefeso, à minha espera, na mais escura das celas do meu pequeno território. Perante mim, serás apenas um objecto e, sempre que te procurar, saberás que é a agonia quem te busca, porque a dor será a única coisa que encontrarás em mim. E isto eu te garanto… Quando eu me cansar de ti e decretar, enfim, a tua execução, há muito que me terás implorado pela morte.
Desta vez, um pequeno punhal surgiu na sua mão e, com um sorriso cruel nos lábios, Amara rasgou a veste do prisioneiro, expondo a alva pele do seu peito.
- Calana… - balbuciou Caledon, consumido por um pavor que não podia já controlar – Por favor, Calana… Eu sou o teu irmão!
A lâmina rasgou um longo corte no seu peito, arrancando-lhe um violento grito.
- Não me devias ter lembrado disso. – respondeu Amara. Depois, o punhal voltou a cortar.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Capitulo V - Parte V

A chuva morosa acompanhava a noite insípida. O silêncio abraçava aquele particular lugar bem no meio da floresta. No chão estendia-se o corpo enlameado do poeta. Seis corvos andavam em círculos sobre o cadáver. Um deles, esguio e ágil, mergulhou na direcção do defunto. Os quatro seguintes seguiram-no, enquanto o último, sebento e com uma pequena ferida por cima do seu olho esquerdo pousou no tronco de uma árvore. Bicavam o corpo inerte. Um deles atingiu um dos olhos vidrados de Galärt, fazendo com que líquido ainda fresco deslizasse no rosto do primo do príncipe. Uma sombra entre os arbustos fez com que os corvos abandonassem o corpo, alinhando-se no tronco onde já se encontrava o corvo ferido. Ofélia surgiu entre os arbustos, levantou levemente a longa saia rasgada, para não a sujar numa poça que misturava lama e sangue. Aninhou-se perante o corpo e passou os dedos vagarosamente pelo pescoço rasgado do cadáver. Olhou para os dedos manchados de sangue e soltou um sorriso. Colocou-os dentro da sua boca e absorveu o sangue, levantou-se, e olhou para os corvos.
- Dhemiema tart wisho?
O corvo mais descarnado abaixou a cabeça e num ápice desapareceu voando.
- Lamento, meu querido. – sorriu Ofélia - A vida de boémia não serve para nada no campo de batalha. Perdeste pelo que não quiseste ser. Estamos em guerra mesmo quando estamos em paz. De um momento para o outro tudo muda. A tua mente foi contaminada pelas mulheres de parca inteligência com quem pernoitaste. Mas não te preocupes. A tua morte acabará por ser vingada. Não que eu tenha algum interesse numa desforra. Apenas é preciso fazê-lo. Elara não sabe ainda. Mas, mais do que qualquer um, é um fantoche. O meu fantoche!
A bruxa saiu do local, seguida pelos corvos.

Entretanto, Elara avistou o castelo, ainda faltava um pouco para a alvorada, mas ainda teria que chegar ao seu quarto sem ser notada.

Arus levantou-se para ir buscar um copo de água. Dirigiu-se à cozinha de uma maneira silenciosa. A sua filha dormia no sofá, o cobertor cobrindo-lhe o corpo inteiro, e o homem nem se aproximou para não a incomodar. Abriu a porta do armário e um copo caiu, estilhaçando-se no chão. Depois, os seus olhos gelaram de horror. A cabeça de sua filha estava pousada numa das prateleiras. O sangue escorria por entre o queijo oferecido por um dos mais conceituados produtores daquela iguaria. Caiu de joelhos no chão e vomitou. Esteve largos minutos a chorar em agonia. Depois, levantou-se em dificuldade e dirigiu-se à sala, ganhou coragem e destapou o corpo, que, como suspeitava, estava decapitado. Controlou-se para não voltar a tombar, deu alguns passos em direcção ao seu quarto, olhou uma última vez para trás e viu um vulto a levantar-se debaixo do cobertor.
- É hora de vingança! – exclamou uma voz bem conhecida – Morrerás, Arus Razza!
O cobertor caiu. Ofélia correu em direcção dele para o atacar…Engoliu em seco…Suspiro…Levantou-se da cama em sobressalto…Tinha sido tudo um sonho. Tirou a camisola de pijama toda transpirada. Estava ofegante. Subitamente, uma certeza assolou-lhe o pensamento. Tinha que matar a bruxa antes que esta o matasse a ele.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Capítulo V (Parte IV)

Quando Mordechai regressou, não foi possível evitar que um suspiro de alívio se soltasse dos lábios de Amara, tranquilizada ao ver que o seu amigo estava bem e que se fazia acompanhar pelos homens que com ele haviam partido. Havia, contudo, algo mais entre eles, uma presença que lhe dizia que muitas respostas viriam, naquele momento, à luz.
- Voltámos, Amara. – anunciou Mordechai, ao chegar junto dela – E trazemos-te a vitória.
Amara assentiu.
- Quantos perdemos? – perguntou.
- Nenhum. – replicou o seu amigo, sorrindo levemente – Temos alguns ferimentos ligeiros, é verdade, mas os números do adversário eram reduzidos. Vencemo-los sem dificuldade.
- Muito bem. – assentiu Amara – E quanto a sobreviventes?
Suavemente, Mordechai esboçou um gesto na direcção dos seus acompanhantes. Imediatamente estes arrastaram na sua direcção a figura suja e deplorável de um prisioneiro que, cuidadosamente manietado e de olhos vendados, foi forçado a ajoelhar diante da mulher que, ainda que ele não o soubesse, detinha nas mãos a sua vida.
- Creio – prosseguiu Mordechai, indicando o homem – que te dará todas as informações que quiseres. Isto se quiser escapar à dor… - acrescentou, sabendo que o prisioneiro o escutava.
- Pois deixa que me veja, – replicou Amara – para que saiba que tudo o que disser será a sério.
A venda foi removida dos olhos do prisioneiro, que, estremecendo, fitou, em desespero, o rosto da sua captora.
- Quem te enviou? – inquiriu Amara, bruscamente.
- Eu… - balbuciou o homem, hesitante - Eu não…
Com um gesto fulminante, Amara desembainhou a espada que sempre a acompanhava, encostando a lâmina à garganta do soldado.
- Não sou paciente. – declarou – Não te vou dar muitas oportunidades. Quem te enviou? Responde ou morre!
- A rainha! – replicou o homem, desesperado – A rainha Alessandra… Oh, por favor… Por favor, poupe-me.
Amara sorriu.
- Vou pensar sobre o teu caso. – declarou – Se cooperares o suficiente, talvez…
- Sim! – assentiu o prisioneiro, desesperado – Eu digo-lhe tudo! Tudo o que quiser, mas, por favor…
- Veremos. – interrompeu Amara – Viste os mortos do teu grupo? – perguntou.
O homem anuiu.
- Quantos sobreviveram?
Por um momento, o prisioneiro hesitou, mas um olhar à sinistra expressão de Amara dissuadiu-o da sua relutância.
- Um… - replicou – Só um… O nosso líder fugiu…
- Fugiu? – repetiu Amara, rindo – Vais precisar de muito para me convencer disso… Quem era o vosso líder?
- Gälart… - respondeu o prisioneiro, trémulo – Juro que é verdade… Gälart, o primo do príncipe… Ele não queria vir, mas a rainha disse-lhe que uma recusa lhe custaria a cabeça…
- Basta. – interrompeu Amara – Se estamos a falar do mesmo Gälart que eu conheci, uma fuga era o mínimo que se poderia esperar dele. Mordechai… - inquiriu, desviando a sua atenção do prisioneiro – Temos uns aposentos adequados ao nosso hóspede?
Mordechai sorriu.
- Ainda temos alguns quartos vagos – declarou – na ala do príncipe.
- Nesse caso, - indicou Amara – tratem de o instalar devidamente. E tem atenção… - acrescentou, fitando o prisioneiro – A mais pequena tentativa, o menor dos pensamentos no sentido da fuga ou de qualquer tentativa contra nós serão castigados com a morte. Estamos esclarecidos?
O homem respondeu com um aceno assustado.
- Muito bem. – concluiu Amara – Então não preciso de mais nada de ti.

- Gälart não se calará. – declarou Amara, ao reunir com os seus mais poderosos aliados. Sentia, fixos em si, os atentos olhos de Mordechai, o sempre apreciativo olhar do mestre e a perturbadora mirada de Mirian, a criança vidente. – Se conseguiu evadir-se, a corte de Lithian não tardará a saber da nossa existência.
- O poeta está morto. – anunciou, subitamente, a voz dos abismos, pelos lábios de Mirian – Procura-o nos bosques onde se deu o confronto, mas a alguma distância. Encontrarás o seu cadáver degolado.
Mordechai esboçou um aceno sombrio.
- Mas quem foi?
- Não sei. – replicou Mirian, a sua voz novamente infantil indicando que o poder se afastara – As vozes não mo revelaram. Dizem que não é necessário. Essa presença manterá o seu silêncio… pelo menos, para já.
- Pois vivamos com o que temos. – concluiu Amara – Procuraremos o corpo do poeta. Enterraremos os mortos desta luta. Nenhum sinal de nós será deixado para trás. Afinal, somos só uma inocente povoação de Agaloth.
As suas palavras foram recebidas com assentimentos silenciosos. Quando se preparava para abandonar a reunião, contudo, a voz dos abismos voltou a falar, calma e tranquila, mas terminante e verdadeira.
- Tens uma visita à tua espera, Amara. – disse – A tua vingança chegou.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Capitulo V - (Parte III)

Faltavam poucas horas para o amanhecer e o pai de Isis não tinha pregado olho. Não bastavam os acontecimentos no casamento da sua filha como também encontrou na sua casa uma surpresa macabra. A ideia inevitável surgiu na sua mente. Seria tudo obra da bruxa? Seria tudo uma questão de vingança?
Por mais que tentasse afuguentar da sua cabeça tais cogitações, a verdade nua e crua é que tudo era uma coincidência muito grande.
A bruxa estragara o casamento da sua filha, e, não satisfeita, tentara pregar-lhe um susto de morte.
Levantou-se da sua cama, atormentado. A pintura que passara horas a apagar da parede, era uma ameaça, um prenúncio ou simplesmente uma brincadeira mórbida?

- Fujam! - exclamou Lydro - Rápido! Rápido!
O comandante do pequeno grupo de resgate abria caminho de volta pela floresta quando foi colhido por uma flecha, caindo inerte com os seus olhos vidrados e surpresos. Gälart ficou imóvel perante o corpo caído. Mais que nunca o receio de morte estava bem presente. Seriam aqueles
os últimos minutos da sua vida?

- Anda! - exclamou Elara, saindo detrás de umas árvores - Não ouviste? Anda comigo se quiseres viver!
- Elara...- chamou Gälart surpreso - O que fazes aqui?
- Eu não sou nenhuma princesa indefesa, meu rico primo - começou a princesa zangada - Quis salvar o meu irmão, mas não teremos oportunidade... Não agora...Anda comigo se quiseres viver. Junta-te ao teu fantástico grupo de combate se queres transformar-te em esqueleto nesta horrenda floresta.
Sem pensar muito o homem decidiu acompanhar a prima. Enquanto isso os restantes elementos do grupo iam tombando um a um.

Por dentro da floresta, Elara e Gälart só pararam quando estavam bem longe do conflito.
- Podemos parar - afirmou Elara - Não creio que se arrisquem a vir até tão longe.
- Concordo. - anuiu Gälart - Já estamos muito perto dos nossos territórios.
- Nunca pensei ver-te num campo de batalha. - afirmou Elara, sorrindo - Mesmo que fosse a fugir...
- Posso dizer o mesmo - afirmou o primo - Mas, ainda bem. Obrigado, salvaste-me a vida.
Elara encostou-se ao homem e num movimento rápido tirou uma adaga do bolso da sua saia e encostou-a à garganta dele.
- Não me agradeças - sorriu a princesa - Sabes, meu primo, odiar-te seria razão suficiente para acabar contigo. Mas, contenta-te, não é a única. Nem tu, nem o meu querido irmão, nem a minha mãe, ninguém vai impedir que chegue ao trono.
- Para que procuravas então o teu irmão? - questionou o primo não acreditando no que estava a acontecer - Porquê? E porque me salvaste se me queres matar?
- Procuro o meu irmão para garantir que morra! - exclamou Elara - E salvei-te porque ninguém me ia tirar este pequeno prazer.
Com um movimento rápido cortou a garganta de Gälart e abandonou o local deixando-o agozinar até à morte.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Capítulo V (Parte II)

Quando, junto com Mordechai, Amara chegou ao local onde, acompanhada por alguns soldados, Delenia vigiava o seu prisioneiro, um breve sorriso aflorou aos seus lábios. Como que inconscientemente, abrandou o passo, ao ver que, enquanto alguns dos companheiros tentavam afastar o prisioneiro para o casebre, já devidamente preparado para o receber, o príncipe insistia na sua imobilidade, mantendo com a sua captora um diálogo deveras… interessante.
- Traíste-me, Delenia! - acusava Adhemar - Porquê?
- Traí-te? – replicou esta – Devo-te, porventura, algum tipo de fidelidade? O que eu fiz foi salvar a tua vida miserável, em vez de cumprir as minhas ordens. Não estavas à espera que te deixasse simplesmente fugir, estavas?
- Enganaste-me… - murmurou ele – Onde estamos? Onde me trouxeste?
Nesse momento, Amara interrompeu-os, aproximando-se, triunfante, enquanto respondia à pergunta do prisioneiro.
- Varin. – disse – Pequena povoação na fronteira de Agaloth. Sede e ponto de reunião de todos aqueles que, como eu, foram condenados pela tirania da tua linhagem e que têm pelo nome de Raven o mesmo ódio que eu sinto.
Adhemar estremeceu.
- Quem és? – perguntou, invadido por uma estranha sensação de familiaridade – Eu… Eu conheço-te.
- Mas claro! – replicou Amara, com um sorriso gélido – Claro que me conheces. Antes de me destruir a vida, o meu irmão tinha planos para ti. Queria que eu me casasse contigo, lembras-te?
- Calana Westraven... – murmurou o príncipe, petrificado.
- Sim. – concordou ela – Calana Westraven. Mas aqui não. Aqui, sou a senhora dos condenados e o meu nome é Amara Morningstar. E a partir deste momento, até que eu tome uma decisão sobre ti, és meu prisioneiro.
Lentamente, Amara aproximou-se, desembainhando um pequeno punhal. Depois, com uma precisão quase milimétrica, encostou a lâmina à garganta do príncipe, rasgando superficialmente a pele, de onde uma pequena gota de sangue brotou.
- Vamos ver as coisas da forma como elas são. – prosseguiu, fixando nos olhos de Adhemar uma expressão transbordante de ódio – Pesasse apenas a minha vontade e matar-te-ia agora a mesmo. Ocorre-me, contudo, que possa haver em Vareil quem saiba que ainda vives e seguramente virão à tua procura. Não posso correr o risco de desperdiçar um trunfo tão precioso. Portanto, de momento, tens duas hipóteses. Submetes-te e eu deixo-te viver por mais alguns dias… Devidamente vigiado e manietado, claro… Não creio que gostes de ser meu hóspede, mas é o que há. Esboça o mais pequeno gesto de recusa e juro-te que morres agora mesmo. E não vou ser rápida nem piedosa, Raven.
Adhemar deixou escapar dos lábios um leve sopro de ar. Depois, deixou que a tensão do seu corpo diminuísse, como se em resignação.
- Muito bem, principezinho. – observou Amara, sorrindo. Depois, voltando-se para os seus homens, ordenou:
- Provavelmente terá sido seguido. Os Raven dispõem de meios suficientes para encontrar o rasto de uma fuga apressada. Alguém virá e encontrar-nos-á. Mordechai… - disse, fitando o seu amigo – Divide em quatro grupos os soldados que estiverem prontos para lutar e tratai de vigiar as fronteiras de Varin. Alguns de vós encontrarão o inimigo… Que não haja misericórdia. Eles também não a teriam.
Mordechai assentiu, afastando-se. Entretanto, também os soldados que acompanhavam Amara tinham voltado a agarrar o corpo de Adhemar que, agora sem resistência, se deixava conduzir para longe daquela mulher do passado, a mulher que há muito julgava morta, mas que, em breve, seria a sua morte.
- Delenia. – disse Amara, enquanto os via afastar-se – Não sei porque o trouxeste até mim. Não vou sequer perguntar-te porque o salvaste, mas não sou ingénua ao ponto de não perceber que sentes por ele algo bem diferente do ódio. Vieste até nós, pelo que presumo que a tua honra falou mais alto. Mas considera isto como um aviso e um conselho… Se alguma vez puseres esse tipo de emoções acima da causa que defendemos, é melhor que partas para longe de nós, antes de nos traíres. Não quero ser eu a erguer a mão contra ti… Mas, se me obrigares a isso, não duvides que o farei.
- Eu trouxe-o. – replicou Delenia – E também não sei porquê, mas não o pude deixar morrer ali. Mas trouxe-to. É teu. Não vou fazer nada contra ti.
- Contra nós, Delenia. – corrigiu a líder – Contra nós. Existe nesta causa uma força muito mais importante que eu. A justiça.
Delenia assentiu.
- Sim… - concordou, pensativa – A justiça…
“Mas justiça para quem?”, acrescentou, em pensamento, enquanto a imagem do príncipe, acusando-a de traição, assomava aos seus pensamentos.

 

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