segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Capítulo VII (Parte IV)

Entrou no palácio de Agaloth como a nobre que era, altiva e serena na sua etérea distância. Perante os que a contemplavam, ela não era simplesmente a senhora dos condenados, era Calana Westraven, nobre das linhagens superiores, possível pretendente ao trono de Lithian. E foi como tal que foi recebida. Aiden Thornblack enviara servos e cortesãos para a receber com a devida glória, enquanto se preparava para conhecer a senhora que Mordechai Gray descrevera como a luz de Lithian.
Quando as portas se abriram para permitir a entrada de Amara na sala do trono, havia um sorriso nos seus lábios e uma elegância quase soberana nos seus gestos. Tinha a postura das deusas e das rainhas e, ainda que habitasse num dos mais esquecidos povos de Agaloth, havia sido reconhecida como senhora perante os olhos dos banidos e dos fugitivos de Lithian. Aceitavam as suas ordens e serviam-na com devoção. E tanto ela como o próprio senhor de Agaloth sabiam que, ainda que parte dessa fidelidade se devesse aos tiranos irresponsáveis que governavam o seu território natal, parte devia-se à nobreza e graça majestáticas de Calana.
- Sede bem-vinda, senhora. – saudou-a o rei, erguendo-se do seu trono para a receber. Calana, por sua vez, avançou alguns passos, curvando-se diante de Aiden numa vénia profunda, tão graciosa como impassível na sua soberba.
- Majestade… - cumprimentou.
- O vosso mensageiro – declarou o rei – disse-me que tendes assuntos a discutir comigo. Como devereis imaginar, há muito sei que Varin se transformou no refúgio dos vossos, mas também sabeis que não tenho qualquer simpatia pelos Raven, pelo que a vossa presença no meu reino não me perturba de todo. Mas vindes até mim, e algo me diz que precisais de mais que a minha indiferença.
Amara assentiu.
- Assim é. – concordou, passando depois a explicar ao rei de quem esperava passar a depender o que sucedera com a sua missão em Vareil.
- Evidentemente fracassámos. – concluiu – Mas a verdade é que tenho um elemento poderoso nas minhas mãos e, caso estejais disposto, na vossa benevolência, a ajudar-nos, tereis também o devido benefício.
- Deveras? – perguntou Aiden – E que benefício é esse?
- Da nossa conspiração em Lithian – explicou Amara – ficámos com alguns prisioneiros. Um deles é o meu irmão Caledon. Sabereis certamente dos motivos do meu exílio e compreendereis o meu desejo de vingança. Pretendo executá-lo com as minhas próprias mãos, mas desejaria fazê-lo dentro das normas, e essas não mo permitem a não ser que reconheçais a minha autoridade em Varin.
Aiden sorriu.
- Quereis ser senhora de uma pequena vila? – observou – Não são muitas as vossas ambições.
- Quero ser senhora de Lithian. – replicou Amara – Mas uma coisa de cada vez. Para o conseguir, precisaria do vosso apoio. Sem ele, eu e os meus somos somente um grupo de exilados contra o peso de um reino.
- Verdade. – concordou o rei – Varin é vossa, independentemente do que eu diga. Quase nenhum dos seus habitantes pertence a Agaloth, não é verdade? Posso oferecer-vos os direitos sobre aquele território. Sois uma nobre e confesso que me agrada a perspectiva de saber Caledon morto. Afinal, ele seria um obstáculo na vossa pretensão ao trono…
- Saberei saldar as minhas dívidas para convosco, majestade, – prometeu Amara – se for bem sucedida nos meus intentos. A morte de Caledon será apenas um capricho pessoal, uma vingança… dolorosa, se possível, que acontecer servir os meus objectivos. Mas tenho mais que isso para os oferecer. O outro prisioneiro é Adhemar Raven.
O rosto do rei moldou-se numa máscara de espanto.
- Tendes um Raven na vossa posse? – exclamou, incrédulo – Não me surpreende que preciseis da minha protecção. Não haverá um soldado em Lithian que não tenha sido enviado em vossa busca.
Amara sorriu.
- Felizmente, - disse – até ao momento os sobreviventes não sabem da nossa existência. Mais cedo ou mais tarde, contudo, vão descobrir. Nesse momento, precisaremos de uma força que nos apoie, ou estaremos condenados.
- O príncipe herdeiro dos Raven… - murmurou Aiden, pensativo – Trata-se de um trunfo valioso. Mas tende-lo em Varin? Não é pouco seguro?
- Assim é. – assentiu Amara – Mas são os meios de que disponho.
- Já não, senhora. Se vos vou fazer governante de um território de Agaloth, então tereis à vossa disposição todos os meios que o reino achar por bem ceder-vos. Tendes a protecção do exército real e o acesso aos edifícios do reino. Inclusive o forte de Varin.
Amara fitou Aiden, incrédula. O forte abandonado, fechado desde que o território perdera a maioria dos seus habitantes para cidades melhor estabelecidas, era um dos edifícios mais seguros e protegidos de Agaloth.
- Sois muito generoso. – observou – O que desejareis de mim em troca?
- Lithian é uma ameaça para mim. – explicou o rei – Há muito que os Raven procuram uma desculpa para entrar em guerra com Agaloth, pois precisam de aliados para nos vencer. Quero que me apresenteis o motivo que eles precisam para partir contra nós. Quando executardes o vosso irmão… guardai um pouco de tempo e livrai-vos, perante o mundo, da vida de Adhemar Raven.

Soran entrou na cela de Caledon como quem visitasse um moribundo. O seu rosto, fechado e austero, parecia deixar antever um qualquer obscuro laivo de compaixão e havia na forma como olhava em seu redor algo de pesar. E, quando os seus olhos encontraram o corpo trémulo e encolhido do cativo, o seu rosto pareceu cobrir-se de tristeza.
- Caledon. – chamou, atirando-lhe as roupas que recuperara – Veste-te, antes que morras de frio.
Os olhos do prisioneiro ergueram-se para fitar o seu benfeitor. Ao reconhecer o seu captor, contudo, não pôde evitar retrair-se no seu minúsculo canto.
- Faz o que te digo. – insistiu Soran – Ou serás orgulhoso ao ponto de insistir num castigo desnecessário?
Trémulo e vacilante, Caledon obedeceu.
- Porquê? – perguntou, fitando o lorde com uma expressão surpresa.
Soran suspirou.
- Trouxe-te até aqui – respondeu – porque estou do lado de Amara no que toca ao teu julgamento. O que tu fizeste não tem perdão e não serei eu a censurar a tua irmã no dia em que ela se quiser livrar de ti. Mas isto… Parece-me demasiado, até para ti.
- Ela não me vai poupar a nada. – murmurou Caledon, mais para si que para o seu visitante – Odeia-me demasiado para isso. Vai manter-me no limiar da loucura, atormentar-me até ao limite do insuportável… e vai continuar a recusar-me a morte, por mais vezes que lha suplique.
- Sabes que lhe deste razões para isso. – observou Soran.
- Sei. – admitiu o prisioneiro – Claro que sei. Mas não o consigo suportar… Eu não…
Fadenbran, por favor… - pediu, prostrando-se aos pés do lorde – Ela não o fará, mas vós… Podeis libertar-me desse tormento. Tende piedade de mim e acabai com a minha vida. Sabeis como ela sabe que mereço a morte, mas isto… Isto ninguém merece!
Soran fitou-o, como se não soubesse o que fazer, ou o que dizer.
- Caledon… - respondeu – Sabem os deuses que, uma vez na vida, concordo contigo. Mas não posso fazê-lo… Simplesmente não posso trair a confiança de Amara. Não posso ser eu a recusar o seu direito sobre ti.
O que se seguiu perturbou a alma de Soran até aos seus confins mais secretos. Diante dos seus olhos, Caledon Westraven chorava convulsivamente, resignado ao seu destino, mas demasiado perdido no medo para poder controlar a sua expressão.
- Farei por ti o que puder. – disse, sentindo que o jogo de que, até ao momento, fizera parte se estava a tornar demasiado cruel – Mas a decisão final não me pertence.
Caledon não respondeu. Já não o via, perdido na estranha loucura de um homem atormentado, de alguém que esperava a morte e, sentindo-a tão perto, não a podia tocar. E enquanto Soran saía, deixando o prisioneiro perdido na sua angústia, havia uma voz na sua cabeça que não cessava de repetir:
- Não devias ter feito isto. Não deverias ter prolongado ainda mais a sua dor.

A voz de Delenia era como um sussurro na escuridão, chamando o seu nome por entre as vozes que o rodeavam. Poucos momentos antes ouvira gritos desesperados vindos do exterior e perguntava-se se lhe estaria reservado um mesmo destino de medo e de dor. Mas a mulher que o traíra e o trouxera até ali chamava o seu nome nas sombras e ele reconheceria aquela voz em qualquer lugar.
- O que queres de mim? – perguntou Adhemar, erguendo-se apressadamente.
Delenia entrou na cela, trazendo nas mãos uma vela acesa.
- Quero justificar-me. – respondeu, fitando o príncipe com uma expressão dolorosa – Não pretendia aproveitar-me da tua confiança para te capturar. Na verdade, se tivesse obedecido, neste momento estarias morto, mas… A verdade é que não consegui cumprir com o que me havia sido destinado.
Adhemar fitou-a, incrédulo.
- E porque mo dizes? – perguntou – Que te importa o que me acontece agora? Já não te pertence a decisão de vida ou morte, podes viver com a consciência tranquila.
Delenia tentou responder, mas as palavras não saíam. Temia o que o seu coração gritava dentro de si, temia que, caso lho dissesse, as consequências pudessem ser terríveis.
- Não foi para salvar a minha consciência. – admitiu, incapaz de controlar as emoções – A verdade é que… Sinto por ti o que nunca senti por ninguém. Não sais da minha memória desde que te vi naquele dia. Não consigo libertar-me de ti, e não é só porque me sinto culpada do que quer que te espere. É porque… Porque tenho sentimentos fortes por ti.
Adhemar riu, um riso sinistro, vazio de emoções, perdido no silêncio da sua prisão.
- Amas-me? – perguntou – Então porque permites que continue aqui? Porque não me libertas?
Delenia tentou responder, mas ele interrompeu-a.
- Não respondas. – disse – Eu sei que não o farás. Traíste-me, mas nunca o farias ao teu pequeno povo. Nunca… Porque eu sou só um e estou condenado, mas eles vingar-se-iam de ti até ao fim dos tempos. Ou talvez porque acreditas na pretensa nobreza dessa mulher a quem segues. É irrelevante. Mas não te atrevas a dizer que tens sentimentos por mim, quando nem sequer tens coragem para escolher o teu próprio caminho.
» Deixa-me. – pediu – Por favor, desaparece. Deixa-me aceitar o meu fim com a dignidade que ainda me resta.
Delenia assentiu. Depois, como uma estátua que de súbito ganhasse vida, deixou a cela, para se refugiar no seu pequeno espaço. Espaço que em breve deixaria para não voltar nunca mais.

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