sábado, 1 de novembro de 2008

Os Filhos de Raven - Capítulo I (Parte VI)

O frio do vento acariciava-lhe o corpo, como a gélida carícia de uma mão invisível. Sobre a sua cabeça, o céu obscurecido pressagiava tempestade, mas, sentada no chão junto ao lago, Amara parecia nem sequer notar as ameaças da natureza. Estava demasiado perdida nos seus pensamentos para o fazer.
Nos labirintos da sua mente, a necessidade de um planeamento estratégico misturava-se com a urgência das suas emoções aprisionadas e o seu espírito parecia vacilar ante o peso da sua responsabilidade. Ali, no silencioso refúgio de Varin, no exterior de Lithian, estava segura, uma vez que o rei daqueles territórios declarara não se envolver nos confrontos dos Raven. Ainda assim, agora que o confronto ameaçava suceder, Amara sabia que, eventualmente, o seu nome seria referido e, se por conspiração não seria entregue, pelas acusações que o passado lhe colocara sobre a cabeça, talvez a situação fosse diferente.
Preparava-se um casamento na corte dos Raven, um casamento que deveria ser rubro de sangue. Sabia que aquela infame família devia morrer e desejava que isso sucedesse, mas, ainda assim, hesitava, não por piedade para com o seu inimigo, mas para com um dos soldados que combatiam no campo de batalha adversário. O seu irmão, mil vezes maldito, mas, ainda assim, sangue do seu sangue.
Ainda naquele momento, apesar dos anos decorridos sobre a desavença, Caledon Westraven habitava na sua mente, o herdeiro da fortuna da sua família, conquistada e preservada pela mácula da traição. O homem que se atrevia a ostentar o apelido dos seus pais, mesmo enquanto profanava a sua memória, depois de, por ambição, ter condenado tudo quanto haviam construído.

Nunca esqueceria aquele momento, quando, na nocturna obscuridade do palácio dos Westraven, bem no centro da corte de Lithian, Amara ouviu um grito rasgar o silêncio nocturno, espelhando um desespero infinito na voz que tão bem conhecia. As suas recordações eram confusas, mas sabia ter corrido em direcção ao quarto da sua mãe, recentemente deixada só pela prematura morte do seu marido, devido a uma misteriosa doença.
Lembrava-se de ouvir os gritos lancinantes que passavam mesmo através da porta cerrada e de, quando se preparava para invadir o espaço, ter sido bruscamente impedida por uma mão que violentamente a agarrava.
- O que se passa? – perguntou ela, revoltada – É a nossa mãe, Caledon! Deixa-me ir!
Caledon riu.
- Deixar-te ir? – repetiu – E permitir que arruínes o magnífico futuro que construí para a nossa família?
Amara debateu-se, mas sem sucesso.
- O que…? – perguntou – Quem?
- Verás. – replicou Caledon – Mas garanto-te que aquilo que contemplas será a nossa fortuna.
No momento em que o jovem nobre pronunciava estas palavras, os gritos silenciaram-se. Poucos segundos depois, a porta do quarto abriu-se, dando passagem a uma figura mascarada que, com as mãos manchadas de sangue, passou em silêncio, sem esboçar mais que um leve aceno na direcção do agora lorde Westraven.
Só então Caledon libertou a sua irmã, deixando que esta corresse para o interior do quarto. Em silêncio, deixou que, na sua inocência, Amara abraçasse, com a força da dor, o corpo ensanguentado da sua mãe vitimizada, torturada pela barbárie e pela luxúria do homem que, evidentemente, fora contratado para a eliminar. Contratado pelo ser desprezível que, com um sorriso nos lábios, observava o violento soluçar da sua própria irmã.
- O que fizeste, maldito? – perguntou esta – Porquê?
- Não é óbvio? – respondeu ele – Porque quero o poder!
- Louco! – exclamou Amara – Julgas que vou permitir que tomes a herança dos nossos pais, sabendo do que fizeste?
- Não tens alternativa, irmãzinha. – declarou Caledon – Olha para ti! Manchada pelo sangue da nossa mãe… Aceitarás em silêncio o que aconteceu e contarás a minha versão da história. Caso contrário, farei com que tu desapareças.
Amara assentiu.
- Pois podes começar já.

Naquele dia, Amara julgou estar perante o momento da sua morte, mas, inacreditavelmente, o seu irmão não o fizera. Queria mais que isso. Queria assegurar que a sua sucessão jamais seria contestada devido à misteriosa morte de toda a sua família e, por isso, escolhera outra forma de a afastar do seu caminho.
Com uma serenidade perturbadora, Caledon surgira perante o rei e apresentara-lhe a sua irmã como a assassina da sua mãe. Acusara-a com toda a ferocidade da mais hedionda violência… e depois chorara. Chorara como se tivesse sentimentos, como se lamentasse a loucura de que acusava o seu próprio sangue, e, amargurado por um fantasma de dor, pediu ao rei que lhe poupasse a vida. Evidentemente, não poderia permitir que ela permanecesse em Lithian, mas se pudesse simplesmente bani-la… Se pudesse mostrar misericórdia para com o seu fiel seguidor…
Fora assim que Amara iniciara a sua luta, sozinha nas solitárias terras de Varin, escondida sobre o fúnebre nome de Amara Morningstar, a amargurada estrela de cada amanhecer de Lithian, até ao dia em que pudesse voltar a ostentar o seu legítimo nome, o nome da legítima herdeira dos Westraven. Calana.
E ali estava ela, agora, sob um céu tempestuoso, incapaz de evitar uma certa apreensão ao sentir eminente o momento de decretar a morte do seu irmão. Mas a sua decisão estava tomada. Não poderia deixar pontas soltas após a extinção do reinado dos Raven, de uma família que, ciente da crueldade do seu irmão, que sabia continuar a martirizar inocentes às ordens da família real, continuava a tolerá-lo como um membro da alta nobreza.
Silenciosamente, Amara levantou-se, seguindo em direcção à casa onde Andros e Mordechai a esperavam. O seu coração fora silenciado. Agora, chegara o momento de dar voz à estratega dentro de si.

- Tomei a minha decisão. – anunciou ela, diante dos olhares expectantes do seu mestre e do seu melhor amigo.
Mordechai assentiu.
- Precisas que faça algo?
Amara respondeu com um gesto negativo.
- Não te vou enviar de volta a Lithian. – declarou – Tu és como eu. Marcado pelo negro dos condenados, dos banidos. Serias reconhecido pelo primeiro soldado que te viste. Não. Por muito que me custe obrigar-te a isto, tu ficarás comigo, nas sombras, movendo as peças do nosso jogo de guerras, não como o rei cobarde que se esconde atrás dos seus exércitos, mas como a sombra que não tem opção.
Mordechai assentiu.
- Se assim o queres… - disse – Mas o que farás?
- Creio – explicou ela – que não teremos outra oportunidade como esta. Os mais capazes de entre nós encontram-se na corte, escondidos e preparados. Delenia espera a minha ordem há demasiado tempo. Creio que chegou a hora de a satisfazer. E o nosso querido conselheiro… tão próximo do rei que este lhe confiaria a sua mísera vida… Creio que não será demasiado difícil derramar o líquido adequado na taça da celebração nupcial.
» Teremos um vingador para cada Raven. Delenia tratará do querido Adhemar, pois é a pessoa ideal para o arrancar da vida num ponto em que ele é o centro das atenções. A melhor lutadora que conheço. Lothian, o conselheiro, tratará de envenenar o rei. Entretanto, Durun e Avalen trataram de Elara e Alessandra. A rainha é apenas uma mulher destroçada, se puderem, trar-ma-ão com vida. Quanto a Elara, sei que é uma víbora escondida sob um rosto de adolescente. Morrerá com os restantes do seu sangue.
Andros assentiu.
- Um plano sensato. – declarou – Mas, perdoa-me que te recorde os teus fantasmas, creio que esqueces alguém.
- Não, mestre. – respondeu Amara – Não esqueci o meu irmão. Nunca esquecerei o que ele fez e, por mais repulsa que me inspire eliminar um dos do meu sangue, Caledon é um instrumento dos Raven e poderia denunciar-nos em caso de fracasso. Tratarei também de enviar alguém para o eliminar. Não… Pensando melhor… Que mo tragam vivo, se for possível. Ainda assim, se não for, não serei eu a chorar a sua morte.

- Não o chorarei jamais. – repetiu Amara, tentando convencer-se a si própria, enquanto, sozinha com os seus corvos, preparava as suas ordens para que chegassem às mãos dos seus seguidores.
Sorrindo levemente, deixou que as suas mãos deslizassem um pouco pelas majestosas penas das fúnebres aves, enquanto lhes colocava a sua mensagem, deixando, depois, que voassem em direcção ao território no inimigo.
Não deixava de ser irónico, pensou, aquilo que estava a fazer. Eram os corvos a voz da sua mensagem, corvos que decretariam o fim dos seus inimigos, negros corvos contra os repulsivos Raven. O augúrio de uma morte anunciada, que talvez expulsasse de Lithian a sombra da sua tirania, mas que nunca acalmaria os fantasmas do seu coração.

2 comentários:

Leto of the Crows - Carina Portugal disse...

Lindíssimo!

Eu não teria pena nenhuma de degolar Caledon, caso ele fosse meu irmão...

Espero a continuação ^^

********

Anónimo disse...

So digo isto...cada vez isto ta melhor...os dialogos, a descrição das personagens e dos cenarios...pah brutal mesmo!!
Isto ja começa a tornar-se viciante e eu gosto! loool

Diogo aka Kakashi

 

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