domingo, 15 de março de 2009

Capitulo IV - (Parte V)

Os seus dedos enrugados tamborilavam na madeira gasta dos braços do trono. Era o mais tenebroso ponto da noite e os olhos afadigados vagueavam pela sala taciturna e despejada. A sua atenção focou-se na seta ensanguentada que estava diante de si. Levantou-se vagarosamente e encaminhou-se para o meio da sala, onde a flecha repousava num lençol branco manchado de sangue. Colheu a arma que extinguiu a vida de seu marido e, com ódio, quebrou-a em duas, largando-as de imediato.
- Não sei quem és! – exclamou a rainha – Mas garanto-te que te arrependerás de ter nascido! Amaldiçoarás o ventre da tua mãe por te brotar! – espezinhou com violência as dois bocados de flecha – Gota por gota…a tua vida extinguir-se-à! Prometo-te, meu marido! Depositarei a cabeça do verme que te eliminou em cima do teu túmulo!

Os passos mergulhados no território lamacento abrandaram. A noite adensava e escondia os já poucos vestígios do possível percurso do príncipe. Galärt usou o braço para limpar o suor que já se manifestava no rosto, originado por algumas horas de buscas. Que fossem alguns minutos, que o desconforto seria semelhante! Os seus terrenos eram os lençóis do reino e não a sombria floresta que as últimas chuvas haviam tornado em pântano.
O primeiro erro da rainha tinha sido a demora em nomear um grupo de busca. O segundo colocar o galã a capitanear esse mesmo grupo. Porém, o forçado capitão sabia que era da conveniência da rainha ter Rómulo e os melhores soldados na sua guarda, não fosse ocorrer um novo ataque. “Carne fraca dispensável…” pensou o poeta, sorrindo desconfortavelmente.
Apesar da surpreendente e absurda nomeação feita pela rainha, o primo do príncipe fez questão de esclarecer o seu papel. Assim que chegaram à floresta, deu o controlo das operações a Lydro, o melhor soldado do grupo e afirmou que ajudaria no que fosse necessário, mas que estava mais habituado a socorrer-se da sua inteligência do que propriamente dos seus punhos. Depois, pensando para si mesmo, recordou-se que em termos de planos de fuga não deveria ter rival, pois já tinha encontrado na sua vida inúmeros maridos furiosos que cobiçavam cortar a cabeça ao amante de suas mulheres. Porém, ninguém podia precisar quem enlouquecia as mulheres provocando o seu adultério, primeiro, porque muitas nunca tinham sido apanhadas, depois, porque as que eram apanhadas nunca acusavam Galärt. Preferiam apontar o dedo para outros supostos culpados provocando sempre situações embaraçosas em casas de homens de família que nunca tinham traído as esposas nem em pensamentos.
Para má fortuna de Galärt, um dos poucos que sempre desconfiou da vida boémia do artista encontrava-se integrado naquele pequeno batalhão. Cäal, soldado do reino, tinha trinta anos de casado quando um dia chegou a casa mais cedo e deparou com a sua mulher em trajes pouco dignos e as cortinas da janela de seu quarto ainda a ondularem.
- Não percebi o que fazes aqui. – começou Cäal – vais cutucar os inimigos com uma pena ou vais escrever-lhes um livro?
- Um livro é uma arma mais poderosa do que aquilo que possas imaginar. Mas a força bruta não te permite ir muito além. – sorriu Galärt – Aqui perante todos afirmei que nunca peguei em uma arma. Porém, há certas coisas que requerem o uso da inteligência. Dos miolos. Assim, contrabalançamos a tua força física com o meu cérebro.
Cäal tentou socar o provocador, porém Lydro intrometeu-se.
- Não é a hora nem o lugar para as vossas desavenças – suspirou – sejam quais forem.
Cäal afastou-se, contrariado, enquanto Galärt foi para o lado contrário sorrindo provocatoriamente. Lydro dirigiu-se ao primeiro e pediu que se acalmasse.
- Neste momento não podemos estar uns contra os outros. A noite aperta e se não encontrarmos o príncipe a rainha corta-nos a cabeça.
Recomeçaram a caminhar e Lydro aproximou-se de novo do companheiro.
- Não penses que não sei o que se passa. Eu sei muito bem o que ele faz. – afirmou, sussurrando – Assim que encontrarmos o príncipe cuidaremos deste verme, morto por uma bala inimiga ou soterrado numa vala perdida, juro-te que este miserável não voltará a colocar os seus pés em Lithian.

A imponente mansão dos Razza não tentava sequer disfarçar o sucesso do patriarca da família. Objectos de luxo, utensílios importados, modas que ainda eram miragens no reino, tudo fazia parte da casa de Arus Razza.
Deitada num dos diversos largos sofás estendidos pela sala de convívio, Isís controlava o seu pranto em postura firme e silenciosa, surpreendendo até o próprio pai, que ainda recordava o rebento que, na sua meninice, chorara a morte da mãe colhida por uma doença que tinha tanto de absurdo como de fatídico. Estava, sem dúvida, diferente. Tinham passado dez anos e o amadurecimento da rapariga parecia também ter despertado uma camada polar nos seus sentimentos perante a dor da perda. O seu noivo tinha desaparecido e Isís não pediu um abraço ao seu pai nem qualquer tipo de reconforto. Apenas um chá e submergiu no paladar da substância calmante sem pronunciar outra palavra que fosse.
Arus Razza sentiu-se culpado. O que para ele e para o rei se tratava de apenas um negócio com vantagens para as duas famílias, pois o facto de entrar na família real abria-lhe as portas dos poucos mercados que ainda não tinha explorado, e o rei teria nas economias grandiosas da família Razza um enorme desafogo, significava muito mais para Isís. “Um rei pobre…como é possível?” Os pensamentos de Arus deixaram a família real e voltaram a concentrar-se na filha. Ela sentia algo intenso pelo príncipe. “Lado negro dos negócios”. Mas, afinal quem teria levado o príncipe?
O pai de Isís encaminhou-se para seu quarto e abriu a porta, ainda absorto em pensamentos. Porém tudo se desvaneceu quando olhou para o tecto do seu quarto e viu um gato aberto a meio, pendurado no candelabro, esvaindo-se em sangue e pintando na parede a sua própria imagem degolado…
 

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